terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Vento.


Ia ser o próprio vento. Desejava assoviar nos telhados de zinco, levantar as saias das meninas, empurrar a bola para dentro do gol, varrer a areia branca.


Um dia seria o vento, pois ele que era sábio. Sem tempo futuro, sempre em tempo presente. Cansou-se de ter hora para isso e hora para aquilo. Quando então encarna-se como vento ia almoçar a hora que bem entendesse. Poderia balançar as plantações de trigais e surpreender os camponeses. Trazer os boêmios mais cedo para casa e permitir que os operários tivessem justificativas para chegar mais tarde em suas fábricas e assim, ficariam um pouco mais em suas camas ao lado do afeto de suas mulheres.

Ia soprar nos ouvidos de quem faz a guerra para que praticassem a paz. Sobre aqueles que muito tem para comer e os que pouco se alimentam, lançaria um grande vendaval e o que entra na boca do homem se espalharia para que entrasse na boca de todos os homens.

Desejava ser um vento de felicidade. Esse que despenteia os cabelos, seca lágrimas, balança as roupas no varal, avisa que a seca terminará, fecha janelas e abre novas portas. Um vento malicioso que se enrosca nas pernas, dá arrepio na coluna e faz bilhetinhos de amor caírem à alguns passos do ser amado.

Como queria ser o vento. Porque o vento faz com que algumas pessoas vão para que outras entrem. Faz com que pessoas vêm para que outras saiam. Nesse movimento poderia se abraçar com as árvores, cantar junto com os pássaros, beijar o sol, enlaçar a lua e fazer com que a Dona Ernestina, volte a tomar cuidado de si. Nesses anos todos ela só tem dado ouvido para os outros, pouco tempo tem dado para escutar o que o seu coração quer.

O Vento não precisa de nada. Era assim que pretendia ser. Para que casas enormes? contar dinheiro e mais dinheiro? Para que tanto suor, Para que tanto luxo? Para que tanta coisa que não se usava? Para que tantos sapatos, roupas, bibelôs? Tinha certeza que isso lhe fazia prisioneiro, do pouco que tinha e do muito que esperava. Como vento estaria livre. O grande mistério estava no desapego do vento. Ninguém o guardava e ele não guardava ninguém.

Lá por Araraquara, cidadezinha do agreste, homens e mulheres, mesmo com a seca, a vida dura, demoram muito a envelhecer. Em um período, as coisas que eram feitas de um jeito, passam a ser feitas de outro. Lá também, por muitas horas sentam na varanda para ouvir a ventania ou o Ventania. Um caboclo que saiu de casa e nunca mais deu sinal de vida, mas nem de morte.

Passageiro.


Podemos pensar que eterno seja o mesmo que pra sempre. Podemos nos iludir que algumas coisas são eternas e desejamos quase com a nossa morte que durem infinitamente. Há várias coisas que se eternizam dentro de nós e nem mesmo nos damos conta. Lá um dia, elas aparecem como um raio de luz, e não foram para sempre. E há várias outras que acabam sendo pra sempre e nunca se tornaram eternas dentro de nós.


Tem o primeiro beijo que nem sempre é eterno, mas tem um beijo que é registro. Tem os passos que damos em rumo há um novo emprego que pode ser pra sempre, mas eterno mesmo é quando vemos nossos filhos andando pela primeira vez. Tem a primeira professora que é eterna. Tem o amor que é eterno. E tem os vários outros amores que vamos sentindo que deixam apenas a digital ou que guardam seu autógrafo no nosso coração. Depois tem tantas outras coisas eternas lá dentro que, só saem pra fora, quando nos damos chance de mergulhar no que há de melhor em nós: a primeira medalha, o chá trazido pela mãe quando a febre apertava o ponteiro do termômetro, o filme do Durango Kid, as bananeiras do quintal, os soldadinhos, as bonecas, ir ao trabalho do pai quando estávamos de férias. A volta de quem amamos, a ida ao encontro de quem amamos. A rodoviária, o aeroporto, o carro.

Somos angustiados para dominar o tempo. O tempo de ter que trabalhar, o tempo de ter que se divertir, o tempo de ter que ir comprar, o tempo de ter que tirar dinheiro, o tempo de ter que estudar, o tempo de ter que dormir, o tempo de ter que estar acordado... O tempo da vida. Esquecemos que o melhor tempo é o tempo de agora. Diferente do tempo de ontem, do tempo de hoje e do tempo de amanhã.

O amor que não tenta dominar é sempre passageiro, porque sabe que o amor tem lá suas manias de nunca ser igual ao que foi um dia.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Amor.

Ensaiou várias vezes diante do espelho. Treinou e treinou e não parou mais de treinar aquela declaração. Seria naquele dia. Não retornaria mais para casa com aquela angústia.




-Maitê...Quando me aproximo de ti meu coração fica apertado, não consigo falar nada, as palavras ficam embrulhadas e tenho vontade de sair correndo. Quero que saiba que gosto muito de ti e que você é a pessoa mais especial desse mundo.



Ela nada falou. Abraçou-lhe tão profundamente como quem acolhesse para sempre aquela declaração. Depois foram brincar pelo pátio, pois a professora estava chamando para que as crianças da 1ª série voltassem do recreio.

Ortelã.


Via aquela menina de blusinha branca sentada no muro. Corpo em plena puberdade, formas perfeitas, cabelos negros que contrastavam com o amarelo dos lírios que cresciam naquela primavera. Tinha perfume de ortelã molhada pela chuva.


Todos diziam que aquela mulher era muito velha para ele. Roupas esquisitas, palavras sempre severas. Um pouco mais de capricho com os cabelos até poderiam lhe dar uma aparência um pouco melhor.

Olhos são olhos. Não se compram.

Patente.


De quem é a patente da guerra?


De quem é a patente da miséria?

De quem é a patente da violência?

De quem é a patente da droga, do abuso sexual, da exploração, da devastação, da extinção?

De quem é a patente “fazer chorar enquanto se sorri”, “fazer sofrer enquanto se diverti”, “enriquecer através do empobrecimento de outros”, “tirar e nada dar”. De quem é a patente bater, matar, armar-se para se proteger? De quem é a patente do medo?

Van Gogh pinta um quadro enquanto Gogan diz que partirá. Van Gogh corta a orelha e Gogan retorna, mas não retornará para sempre. Van Gogh ficará louco. Gogan ficará louco.

Do jeito que caminha a humanidade não restará nenhuma coisa para fazer patente. Nem merda.

Recado.





Ela estende a mão para pegar uma caneta. Ele está sentado na platéia.

Ela pegou dois ônibus para chegar e cantar ali enquanto as pessoas comem seus hamburgers. Ele deixou seu carro fora da garagem porque não quer pagar estacionamento.

Ele pensa que ela olha para ele. Ela olha no vazio e pensa na sua vida.

Ela percebe que novamente há dois acordes errados na música e altera a cifragem. O garçom passa reto. Ele a perdoa. Levanta e se vai. Na próxima sexta quem sabe ela lhe enxergue e lhe escreva um recado.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Maria.


Tinha 18 para 19 anos quando chegou na capital. Muito longe. Veio de muito longe com a barriga grande, um amor que lhe abandonou e um avô italiano que lhe expulsou de casa. Não sabia nenhuma lida além da de mexer na terra, cozinhar para os irmãos e cerzir buracos de meias, cuecas e camisas que iam se despedaçando com o tempo. Também não sabia ler.


A barriga ia crescendo. Todo dia a barriga ia crescendo. Ninguém quer empregar uma mulher de barriga grande. Aos 21 de abril, deu a luz para uma menina mulata, que denominou de Luz.

Sem barriga pode empregar-se como costureira.

Maria admira o DVD. É complicado, teimoso, com um controle remoto repleto de botões. Olha o homem da TV que não olha para ela, mas ela olha para ele. Maria se orgulha da sua cabeça. Toma guaraná cerebral e escreve com um só olho, pois o outro se foi: fruto de uma trombose. Diariamente faz isso, copia pequenos trechos de livros, passa a limpo receitas, escreve pequenos poemas. Ela tem fé que assim a tal doença que chamam de mal de Parkinson nunca vai lhe deixar uma velha gagá.

Maria não tem mais o parceiro, o Luiz já se foi há uns 20 anos. A única filha também já partiu. O mesmo ocorreu com seus três outros irmãos. Nos domingos, com seus 83 anos, pega o taxi e vai visitar a irmã mais nova. Vestido escolhido a dedo, passa batom e pergunta para o neto se está bonita. Ele sempre diz que está e ela sempre acredita. Eles não se mentem. Eles se amam.

Maria faz planos. Tem planos em trocar os azulejos da cozinha e do banheiro, tem planos em comprar uma geladeira nova, tem planos em recomeçar a hidroginástica, tem planos em voltar a estudar. Não está em seus planos chorar pelos cantos, em lamentar pelos cantos, em amaldiçoar pelos cantos. Ainda tem que fazer muito arroz doce e torta de bolacha de leite condensado com pitadas de limão.

Todas as manhãs reza no seu quarto de oração. Diz à eles que lhe de saúde e um pouco mais de conforto. Pede por todos e para todos, só não pede mais para viver um grande amor, já viveu o seu. Maria pede também para viver ainda muito, pois muito tem que fazer. Eles acreditam. Agora eles é que tem fé nela, porque ela colocou sua fé a disposição deles por toda sua vida.

Ilusão de Ótica.


Devia usar óculos, mas insiste em usar lentes de contato. Devia se alimentar melhor, mas insiste em se alimentar pior. Insiste também em acreditar que ela olha para ele.


Ela canta e olha para o vazio. Ele insiste em acreditar que o vazio é ele. Ele insiste em acreditar que mulheres impossíveis irão se apaixonar por ele. Ele insiste em acreditar que esbarrará no seu amor. Ele insiste em dizer que está enxergando, quando nada vê.

Mas, seja lá como for, quando olhamos pela janela do carro, a paisagem nos parece tão bela. E tudo também não passa de uma ilusão de ótica.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Livraria.


Por muito tempo as livrarias foram lugares habitados por gente de outro mundo. Que coisa séria. Obter conhecimento nesse tempo era sinônimo de lentes garrafais, pouco batom, cabelos lambidos e um ar de extraterreno.


Os livros agora percorrem as mãos da gente desse mundo. Gente que procura respostas. Respostas de amor, respostas científicas, procuram o trem e a bagagem, o cálice e o vinho, as asas e o vôo. Nunca encontram e por isso continuam procurando.

Camila está lá com a sua mãe. Ela lê alto e camila ri. As duas dividem a mesma poltrona, o mesmo sonho, a mesma mágica. Alguém passa e as chama - para cá. Para dentro do mundo real. Elas atendem, mas logo em seguida voltam e começam a rir novamente.

Camila é bela, muito bela. Não usa óculos, não tem cara de uma pessoa fora desse mundo e demonstra um ar de quem gosta de algumas boas horas em frente ao espelho. É nova, uma pequena menina, mas que já tem escrito no seu rosto que ela é verão, esteja no inverno ou no outono. Sobe e desce as escadas da livraria correndo, intimamente conhecedora de cada degrau. Percorre os corredores com muita destreza. É leve porque só à tristeza é que pesa. E tristeza é um mal que Camila não sofre.

Está boquiaberta com a possibilidade do bruxo, mesmo sendo um bruxo, também possa ser um príncipe. Detraidamente deixa que um pingo do seu pirulito caia sobre parte da história. A mãe olha para ela com uma cara de quem está a repreendendo. Camila não está preocupada. Olha para mãe e responde:

- Agora a história ainda está mais doce, mamãe.

mOSquiTO.

Gostava de olhar por dentro das saias. Desde pequeno já tinha o mal hábito de dar beliscões nas bundas da mãe e das irmãs. Quando o espelho retratava um rosto repleto de espinhas, foi o tempo em que criava mil estratégias para poder entrar silenciosamente no quarto da irmã. Divertia-se vendo as amigas dela.


Amadureceu e os péssimos hábitos lhe acompanharam. Deixava picadas em suas namoradas propositadamente, voava de bar em bar atrás de qualquer coisa mais doce que um copo de cerveja, pousava sua mão mesmo sobre o ombro de desconhecidas. No futebol, que futebol, ficava zunindo o primeiro ouvido que lhe desse trela.


Certa noite a morte lhe visitou. Ela sentou sossegadamente ao seu lado e disse que tinha chegado a sua hora. Ele perguntou a ela se tinha certeza. Ela olhou novamente em seu fichário. Confirmava lá o nome: Onório Dutra. Onório Dutra é você. Devemos ir, pois o diabo não tarda a raiar. Em uma contra proposta perguntou para a Morte? A Morte nunca foi lá muito regrada, exata, pontual. Para alguns chegava cedo demais, para outros perdia as contas.

Sou toda ouvidos, respondeu a dama vestida num belo e prateado vestido de noite. E se me transforma-se em outra coisa, confidenciou Onófrio.

Na manhã do dia 7 de julho, as 10 horas da manhã, uma centena de viúvas se batiam para deixar a última lágrima e um cravo branco para Onófrio Dutra. Todos que estiveram no enterro não puderam deixar de reparar um mosquito infernal que acompanhava o cortejo. O mais admirável é que o tal inceto era enxotado dentro de seios, embaixo de saias, em volta de pescoços femininos. O mosquito só sossegou quando encontrou uns belos lábios carnudos que pousou e por ali ficou.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Monólogo II

Nunca estiveram juntos. Sempre estiveram sós. Sua única certeza é que Platão convivia entre eles. Ela teme que o real possa
matar o sonho.




Ele se indaga quando o sonho teria nascido? Trocavam amores que não se viam e não se tocavam. Um monólogo dentro de um diálogo.

Bergamota.


Naquela estação de inverno não tinham margaridas. A angústia era tanta e maior, como poderia saber se realmente era “bem me quer” ou “mal me quer” o sentimento que ela confessava por ele. Procurou o Padre na sacristia, mas o danado homem de Deus deu voltas e mais voltas. As dúvidas continuaram fritando seus sonhos como pequenos demônios em véspera do juízo final.


Sem que ninguém visse, já tarde da noite foi a casa de uma benzedeira. Mulher misturada com bruxarias, que tirava moléstias, afastava espíritos da doença e até mesmo fazia aconselhamento de dores de traição. Ela jogou suas pedras azuladas sobre um tecido negro, mas nada que acalmasse a correnteza de suas águas. Tipo: vai Lituano, junta tua pequena casa e móveis, tua honestidade e vontade de trabalhar, com a alegria de pitangas vermelhas dessa moça que foi encomendada para ti.

A romaria continuou. Foi ter com amigos, passou na venda e discretamente interrogou seu Ananias, até a velha gorda que entregava doces não foi poupada. Em um passo forte de umas duas horas de caminhada só lhe restou o homem que diziam ver e conversar com as estrelas nuas. Dizia a lenda que cada peça que elas no céu iam vestindo era resposta para um acontecimento. O tal velho ermitão só vinha de dois em dois meses a cidade, inclusive as provisões e seu pagamento, o carteiro mesmo se encarregava de entregar. O jeito era mesmo ir até o homem.

Ele lhe pediu a hora e data de nascimento de ambos e fez alguns apontamentos num grande mapa enquanto falava de física, matemática e biologia. Disse que Astronomia era uma ciência que podia prever o clima no decorrer do ano, investigava as marés, a interferência da luz forte do sol sobre o lado oculto da lua.

O vento cantava por uma janela entre aberta, como se participasse do assunto dando um pitaco aqui e outro muito, mas muito longe, uivado ali. Mas o velho ermitão, quase que surdo, não dava ouvidos e ia tecendo um emaranhado de teorias que não o tiravam do mesmo círculo. Nada mais esclarecedor de que todos os outros que tinha consultado. De forma apaixonada ia descrevendo seu conhecimento enquanto descascava vagarosamente uma bergamota, fruta cítrica que adoça quando o pé se veste de branco com o cair da geada.

Com um ar muito entristecido Lituano pegou o mapa que o velho lhe presenteou e despediu-se. O velho perguntou se não levaria a bergamota. Rapidamente passou a mão na fruta e partiu. Na volta foi comendo e para cada gomo, resolveu agir da mesma forma que se age com as margaridas, um era “bem me quer” e o outro era “mal me quer”. Para sua alegria, quando acabou de comer a fruta, a resposta era bem me quer.

Na noite que o Padre lhe dava estremunção, Lituano pedia perdão por seus pecados e pelo maior deles que tinha sido dar uma vida tão amarga para ela. Não que naquela tarde a bergamota estivesse azeda, mas que daquele dia em diante esqueceu que as bergamotas não se adoçam por si só.

Monólogo I


O que se faz quando se espera uma notícia única? Um olhar único? Uma palavra que seja apenas para nós? De que é composto o amor se não de vários pequenos momentos, que não ocupam lugar, mas expandem o tempo. O retrato daquela viagem, daquela manhã de sol, daquela música que marcou o primeiro encontro, o silêncio do admirar, a água chiando e o café pela tarde. Tarde que vagabundeava na rede.

O amor que não chega a sua conclusão é o pior amor vivido. É o amor que disse sim dizendo não e disse não quando deveria dizer sim. Não somos culpados por aquilo que fazemos e não dá certo, nos culpamos por aquilo que não fazemos. A vida fica mais pesada quando nos separamos de nós mesmos. O trem da esperança, o trem pintado de verde, o trem que acredita, desmaia. Não são os amores perdidos que impedem que novos entrem, é a previsão do tempo. Insistimos em sempre prever tempo de chuva para amar novamente.

Cadê aquele espírito de meninos que se jogavam de cabeça em qualquer mar? O que fizemos de nossos diários que colávamos corações e mais corações? Íamos para as festas e esperávamos uma noite inteira só para que pudéssemos dançar uma música lenta bem juntinho com o nosso amor e voltávamos sonhando até a próxima festa ser marcada novamente.

Nada me tira da cabeça que amar é a matemática sem números. Nunca ninguém ganha nem perde. Não se coloca numa máquina registradora os beijos dados, os abraços conferidos, as meigas palavras. O amor é uma conta que quem conta só perde.


Insistimos em não andar. No amor tem acontecido o mesmo. Não andar economiza os sapatos, mas também como descobrir se eles são macios ou podem vir a ficar macios.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Levar a alegria para passear.

Com uma dessas coleiras comprada em petshop exclusivo, levava a pequena cachorrinha com pedigree e ancestralidade para passear, mas não bastava. Adquiria quadros adoráveis na galeria de sua amiga que os trazia especialmente para ela de Barcelona, mas uma realidade paralela vinha lhe acordar exatamente às 3h15min e para ambas irem dormir sossegadamente, só após alguns calmantes.




Tinha o corpo em fogo e sentia um ciúme doentio que queimava em relação a empregada. A mulherzinha de pouca estatura, que não se podia tirar para feia, mas que para bonita também não servia, lhe dava vulcões com larvas que ficavam trancadas e nunca escapavam para a superfície. Mas o que há desconcertava mesmo era ver a outra remexer os quadris grandes por dentro da casa como se estivesse sempre numa escola de samba, imagine na rua. Taxativamente proibiu a cachorra de passeios com a Margarida, era evidente que todos os viralatas da redondeza já as esperavam para apreciar o desfile infinitamente sedutor.

Em tempos que a crise era maior arranjava afazeres para empregada para torná-la fragilizada, menor. Depois se deprimia, dava-se conta, trazia pequenos agrados e recolhia vestidos fora de uso e a presenteava. Várias vezes pensou em mandar Margarida embora, mas era exatamente o bolo de fubá, as histórias da noitadas na gafieira e até mesmo confidências de uma vida sexual picante que a faziam mudar de idéia. Não era muito simples de aceitar que Margarida era seu tesouro e mesmo bem paga, não tinha preço.

Convidou Margarida para um chá e a mulherzinha foi no fogão e esquentou um café e pingou leite gelado dentro. Com a xícara na mão sentou-se a sua frente e sem eira nem beira começou a falar. Quando se é ,sem ter nunca sido, passe um bom batom vermelho nos lábios, coloque uma saia justa e um sutiã bem apertado destes que os peitos quase pulem para fora da blusa e leve sua alegria para passear. Dois meses depois separando a correspondência Margarida viu um extrato bancário de uma escola de dança de salão.

Caixas.



Às 16h30min a bolsa estourou. Não acharam o obstetra e o parto foi nanutal mesmo. Fazia muito calor naquele mês de abril. Para uma família de oito, aquela raspa de tacho, era uma pérola.

Belos caixos que balançavam ao vento. Os cabelos cor de mel escureceram, as pequenas mãos que alcançavam milho para os patos amadureceram e logo, sem que as vistas pudessem acompanhar, se tornou uma adoslecente. Devia ter pouco mais de sete anos quando perdeu a mãe. Era julho, talvez não chovesse, mas para eles devia estar chovendo.

Trazia pequenos versos escritos em folhas de papel para o irmão ler. Queria que ouvisse suas histórias. Ele ouvia. Algumas vezes a contragosto, mas mesmo assim as ouvia. Perdeu as contas de quantos verões e primaveras, foram invernos e outonos. Esteve muito só. Nunca disse a ninguém que sofreu, mais tarde reconheceu que sofreu. Nunca disse que rasgou páginas do seu diário, derramou lágrimas no seu travesseiro e deve ter apregoado tantos desaforos a Deus por ter levado sua mãe. Mas Deus não a castigou, quem sabe ele tenha dado razão a ela?

Está na hora de embarcar. Eles Estão todos muito felizes que ela vai para França concluir seu Doutorado, mas mesmo assim estão chorando. Choramos também quando estamos felizes. Na Casa da Dinamarca na França vai guardando suas recordações nas caixas. Nas caixas cinzas coloca as tristes, nas caixas rosas coloca as lembranças de quando o irmão foi buscá-la na primeira reunião dançante, seu primeiro namorado, a formatura. A caixa azul, deixa a tampa aberta, o marido não tarda e chegará do Brasil, essa é a caixa que reservou para os momentos felizes.

Armazéns [Bienal 2005 - Porto Alegre]


Os armazéns estavam lotados. Ele adorava as coisas que eram coloridas. As coisas coloridas coloriam seus olhos. Seus pés pequenos caminhavam sobre os enormes armazéns. Via-se em outro mundo. Num mundo onde sombras desenhavam enormes homens, sucatas se transformavam em naves, bobinas gigantes pareciam...Não pareciam com nada. Só eram bonitas e surpreendentes porque eram gigantes.

Em nenhum momento deu muita bola para o que era preto e branco, feio, sujo ou triste. Queria entrar várias vezes na casa de pelúcia cor de rosa, queria uma casa de pelúcia azul, porque era cor do seu time. Não fazia questão das lágrimas, ainda não carregava lenço no bolso para secá-las.

Outrora os armazéns do porto tinham servido para armazenar cargas que vinham de longe. Ele olhava o rio e imaginava os navios chegando. Estacionando seus grandes cascos, descendo suas ancôras e seus marinheiros com seus quepes branquinhos como blocos de neve. Estava surpreendido pelos guindastes e seus braços de metais. Queria ser um daqueles que no passado, de dentro das cabines, era o comandante daquele leva e trás.

Muitas mulheres bonitas. Lindas dentro daqueles armazéns. Algumas com sapatos de saltos, outras com seus filhos a tirá-colo, outras ainda dentro de seus jeans que desenhavam suas curvas. Seios que conversavam com as esculturas, ventres que opinavam nas instalações, sorrisos que sorriam para as camisas brancas penduradas, mas que também flertiavam com outros sorrisos. Essas obras de arte ele não viu. Era cedo ainda para ele ver.

Naquela tarde confirmou algo que já sabia e seria a primeira coisa que contaria na escola segunda-feira para sua professora da 1º série. Armazéns são lugares feitos de pessoas que querem tocar em tudo porque tudo dá vontade de levar para casa. Como os da esquina da casa dele cheios de balas e chocolates, carnes e verduras, ou como aquele cheio de sonhos.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Substituto.




Deixou no varal a roupa quase que fraterna das 12 horas de trabalho. Antes deu uma boa lavada na camisa que ainda continha pingos de sangue. Foi ao banheiro e escovou os dentes, lavou o rosto e não eram ainda 7 horas quando deitou-se e dormiu.

O relógio não marcava 16 horas quando foi ver o que acontecia entre uma calçada e outra. Comprou alguns doces e deu para o menino que brincava na gangorra. Viu quando a mãe mandou o filho colocar os doces fora, mas não se abalou. Perto das 18 horas foi ao cinema e duas 2 horas mais tarde estava em casa.

Deixou dentro do armário o homem doce que era, pendurou o coração no cabide e os olhos colocou dentro da primeira gaveta. Banhou-se para tirar o perfume e separou as correspondências. As que eram para Petterssen ficavam sobre a mesa e as que eram para Linardi embaixo do colchão. Fez uma ou duas ligações. As que eram para Ana, a voz era ríspida, as que eram para Lizete, a voz era melosa e apaixonada.

Na primeira página do jornal de domingo Petterssen inaugurava mais uma amostra de várias obras de arte com um contorno suave da anatomia feminina. Linardi leu aquilo e amassou a reportagem e a colocou para queimar junto a lareira. É impossível acabar não sendo do jeito que os outros acreditam que você é.

Hipertensão.


O médico disse que ele teria que tomar aquele beta-inibidor.

E as contra-indicações? Perguntou-lhe quase que automaticamente.

Calmamente o médico lhe anunciou que baixaria o seu rendimento na prática esportiva, na prática sexual, mas com isso não teria nenhum risco de morte súbita.

Pensou ele cá com seus botões. Um coração que nadará mais devagar, que correrá mais devagar, que fará amor mais devagar, que não viverá mais ofegante. Que coração desmaiado seria aquele?

Por vários meses tomou o remédio. Até que um dia voltou ao consultório.

Doutor? Sinto falta do meu antigo coração. Aquele que pulsava mais compulsivamente.

Ele pode estar curado, mas não alegre. Sinto que as outras partes do corpo estão entristecendo. Desde então, guardou o beta-inibidor na gaveta e se deixou viver com alto risco de morte súbita.

Casamento.





Uma mulher que ensinava. Lecionar sempre foi seu grande sonho.
Naquela época chamavam de MOBRAL, alfabetização de maiores. Dn Neuza conseguiu a vaga de professora e logo tinha uma turma que chegava aos trinta alunos.
Mais tarde e com relativa intimidade descobriu que a maioria deles viviam em pecado. Grande parte dos seus alunos não eram casados.

Na tarde de 23 de agosto foi até a Igreja ter uma conferência com o Padre. Diante do pastor, explicou-lhe a situação e seu desejo. Para aquela professora devota, fresqüêntadora assidua das missas, praticante determinada das escrituras, um casamento que não tinha as bençãos de Deus, era simplesmente a união de corpos. Para não dizer que se tratava de coisa do demônio, suavizava dizendo que era muito feio.

O Padre ouviu-la e mandou descançar. Após três dias, mais uma vez ela insistiu, e mais uma vez o padre mandou ela descançar. Isso se sucedeu durante quase duas semanas. Neste dia então, disse ao Padre que estava cançada de descançar e queria saber se casaria ou não os seus alunos.

Foi naquela manhã que jurou não ir mais as missas, não acreditar mais em pecado, crer num outro caminho de Deus e aceitar que este mesmo Deus poderia ser encontrado, quando nos encontramos com nós mesmos. O Padre nunca rezou a missa dando a benção de casamento para os Alunos da professora Dn. Neuza. E ela desde então passou a ensinar uma outra religião. A religião do amor.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Panacéia


Escondia de ontem algo de hoje. Seus olhos verdes se confundiam com os dos lobos e sua pele falava das noites sem prazer. Queria ser amante, mas sua igreja não permitia. Queria uma aventura, mas preferia a roda gigante, o pacote de pipoca e as amigas que lhe tinham como sacra.

Lina perdia o sono, os lençóis pela manhã tinham o cheiro de sonhos cheios de carícias e olhava pela janela, como se a janela também não guardasse um silêncio próximo a estupidez.

Fazia encontros secretos com livros proibidos que guardava em um armário que só ela tinha a chave. Guardava tudo. As lingeries mais ousadas, os vestidos com decotes que marcavam os seios, os miúdos biquines, um perfume intrigante que acreditava e teria comprado como afrodisíaco. Naquela doença, nas noites quando não tinha ninguém em casa, tornava-se a mulher desejada que desejava ser.

Na manhã seguinte ainda com a ressaca do champagne barato e das cigarrilhas fumadas uma atrás da outra, buscava um remédio para todos os seus males. Em novembro passou a tomar florais de bach que vinham lhe trazer tarde da noite quando toda casa se apagava e apenas uma luz vermelha ficava acesa. Pela manhã ela cantarolava pelo pátio e servia licor para os rasks siberianos, enquanto pendurava uma camisa branca e um jeans, olhando se ninguém a olhava. Algumas vezes Ângelo estranhava a insistência e a preocupação da esposa com as viagens e com os negócios, mas como na sua volta sempre esperava com o seu prato predileto, não a contrariava e saía em viagem.

Amar-se. Armar-se.


A vida é feita de pequenos detalhes. Infelizmente insistimos em pensar que são os grandes acontecimentos que nos mudam, auxiliam. Mas, são os pequenos detalhes que nos moldam. O hábito que faz o monge e não ao contrário. É assim com o corpo, é assim com o beijo, é assim no sexo, é assim nos relacionamentos.

Armar-se. Contras a possibilidade de bandidos entrarem em nossas casas, estar seguro depois da saída daquela aula que demos e se estendeu até mais tarde, de levarem nosso carro, de estarmos viajando e cairmos numa cilada, para ficar sozinho na praia, dos traficantes, das violências, perseguições, malvadezas, chantagens, roubos, corrupções, contra o abuso sexual, contra o abuso de poder, contra o abuso.

Amar-se. O dia de amanhã, o dia de ontem, o dia de hoje, o outro que chega para pedir uma informação, o moleque que pede uma moeda na sinaleira, alguém que se apaixonou por nós, alguém que passou a ter inveja de nós, o sorvete, a natureza, flores, beija-flores, a praia, os pais mesmo quando enchem o saco, o colega mesmo sendo chato, a vizinha que pediu mais alguma coisa, os bilhetes que estão na gaveta, o livro emprestado, as lágrimas, o sorriso, o poema, a música, a filha que nasceu, quem pode entrar para atrapalhar, a paz, a não violência, a terra, a Terra, aquilo que vemos e aquilo que não vemos, os olhos, o coração, amar a vida.

Não tenho armas e nem vou tê-las. Não acredito que nossas calamidades possam ser resolvidas por um 38 - guardado entre os abrigos do guarda-roupa. Não acredito que é possível que a camisa “Eu Sou da PAZ”, também possa enrolar uma pistola. Não acredito que a mesma mente que repete frases do Ghandi possa acreditar que a sua segurança, é uma escopeta atrás da porta. Não acredito que a mesma professora que não deixa os meninos levarem os Power Rangers para escola, pois não quer que se tornem homens violentos, tenha uma espingarda calibre 22.

Puxe da sua memória: de um jeito ou de outro vivemos armados e isso de nada tem adiantado. O medo só aumentou. A solidão é avassaladora. As drogas só se proliferaram. A fome é cada vez maior. A perspectiva de dias melhores para alguns é menos um. Sejamos honestos. Amor é o que falta. Aquele que em algum instante imagina a possibilidade de ter que matar, de alguma forma também já está morrendo.

Moeda de Troca


Mulheres adoram palavras amorosas, ainda mais quando estão escritas. Elas tem sabor de chocolate, flores, bombons. Talvez até criem mais impacto, porque são declarações infinitamente mais duráveis.
Mulheres guardam antigos retratos dos primeiros namorados, retratos dos acampamentos na praia, guardam flores dentro de livros para que sequem e tomem forma de coração. Guardam o tempo.
Mulheres reparam na roupa que se usou ontem e na que se usou hoje e preparam a roupa que se usará amanhã. Elas reparam o mundo que passa em volta e o mundo que dá voltas.
Homens logo esquecem a data do casamento, os chocolates, a primeira namorada, imagina lá a música que tocava no primeiro beijo. Homens geralmente estão envolvidos com dinheiro, com as contas que estão muito altas e que o telefone disparou. Raramente passa pela cabeça que os filhos periodicamente tem que ir ao pediatra, das revisões ao dentista, dos temas da escola, de ligar e ver com a baba se almoçaram.
Grande parte das mulheres gosta de ver seus homens na cozinha. Gostariam que algumas vezes assumissem a louça. Molhassem as plantas do jardim. Tomassem um pouco mais a natureza da vida e não apenas do escritório. Que fossem quem sabe mais homens e menos maridos. Elas pensam que poderiam ser um pouco mais amantes e sonham com eles mais amantes. Mas já estão muito duros para escrever, as pequenas declarações vão ficando na ilusão e a vida de ambos menos singela. Uma vida mais para leite desnatado do que para leite condensado.
Mulheres gostam de homens fortes, mas em alguns momentos querem eles doces. Mulheres gostam de homens extrovertidos, mas em alguns momentos querem eles tímidos. Mulheres gostam de homens, homens, mas em alguns momentos querem eles em lágrimas, como mulheres.
Cada vez mais, uma maioria de mulheres não precisa de dinheiro de seus homens. Na mercearia Ernesto pede um kg de carinho para o jantar. Seu Alfredo com rugas na testa fica com uma expressão de indagação.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Magrela.



Chamava carinhosamente a sua bicicleta de magrela. Era homem bom, honesto e virtuoso.
Amava sua esposa. Ela ia para Igreja, ele durante a semana era zelador. Tinham uma menininha de 6 anos. Ela aprendia a ler. Eles se orgulhavam.


O amor é simples. Como o amor tem se demonstrado simples. Como o amor tem se demonstrado que é só amor. Dane-se os terapeutas de casais, melhor, dane-se todos aqueles que querem curar o amor.


Orgulhava-se do seu ofício. Colocava o uniforme como se fosse um fardamento. A camisa bem engomada, o sapato bem lustrado e as calças azuis impecavelmente passadas. Abria a porta do elevador como se as pessoas fossem majestades. Mas, nem por isso se tornava plebeu. Tinha um perfume e algumas vezes borrifava no hall de entrada.


Como é bom trabalhar no que se gosta. Nos incomodamos menos, envelhecemos menos e não ficamos angustiados para que a sexta-feira chegue para nos tirar da prisão. Há muitos escravos na nossa sociedade. Eles capinam as praças, varrem as ruas, nos servem cafezinho, torneiam peças o dia inteiro, fecham caixas nas linhas produção. Mas, há escravos piores. Os que não tem coragem de levantar a poeira. Sonham para suas vidas algo que nada tem haver com o que fazem. Estão acorrentados pelo dinheiro. Um mundo sendo jogado fora, uma voz sendo apertada dentro do peito, um retrato que vai amarelando de nós mesmos.


Lá ia ele com sua magrela. No sábado pela manhã saía em direção da sua casa que dava mais ou menos 1 hora e meia da cidade. Via a cidade, lia a cidade com os olhos, sentia a cidade correndo no seu peito, voava pela cidade que deslizava nos pneus da sua magrela.


Tínhamos que reclamar menos do que temos demais. Deveríamos ir ao circo. Perfumaríamos mais as nossas idéias se tivéssemos disposição para colher as pitangas. Estamos infeccionados por ar-condicionado, estacionamento, vitrines, celulares, velocímetros. A banda larga está transformando a vida numa banda curta. Não falta muito para perguntarmos com quantos megas se faz uma canoa.


A menina sorriu quando sentou-se no banco da magrela e seus cabelos balançaram ao vento. Outro dia alguém teve que explicar que as alfaces são colhidas da terra. Não tiro de todo a razão da velha gorda, o mundo está muito barulhento e as buzinas não fazem o trânsito andar.

Péregrino.



Mas, diante do arco e da lira, o menino agradece pelo acolhimento e sem reservas: ama-as.
Tb, vcê, att, bjs, sabm, cmo?


Um homem sai de dentro de um corpo de uma mulher. Para o corpo de uma mulher sempre retornará, ou andará meio nervoso, carregando sua solidão.

Um homem é alimentado primeiramente por uma mulher. Lá vai ele agradecer. Vai saber o preço das jóias, dos jantares, da divina comédia da gratidão.

Um homem é confortado, acariciado e tem como colo de suas angústias o corpo de uma mulher. Lá vai ele dar a ela o seu relógio.

Talvez esse seja um bom momento para Homens pararem de agir como Bebês. As mulheres estão cançadas de trocarem as fraldas. Mas, diante do arco e da lira, o menino agradece pelo acolhimento e sem reservas: ama-as. Estradas diferentes é mais aconselhável ir a pé, como péregrinos.

Bolachas no café.


O meu amor vinha devagarinho. Se escondia,
se perguntava, se debruçava sobre o muro. Berlim, Barcelona, Brasil. O meu amor jogava capoeira, sorria, se ia e se voltava.
Sentia multidão, sentia-se isolado. O meu
amor se enamorava por João Gilberto,
mas era a nudez dos atabaques
que o deixava claro.

O meu amor tinha deixado suas fronteiras no aeroporto, suas malas pelo céu, suas terras nos bilhetes que guardou. Mesmo voando, algumas vezes suas asas se sentiam paralisadas.
O meu amor queria ir, mas o meu amor insistia em ficar. O meu amor dormiu para ver se sonhava com outro amor. Bolachas, manteiga e mel. Nem tudo tão doce, mas nem tão amargo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Belo Dia.


Deus fez as mulheres com pernas lindas. Os homens imaginaram que era para seu deleite, quando elas as cruzassem.

Deus fez as mulheres com os quadris flexíveis. Os homens pensaram que fosse para vê-los desfilando na praia.

Deus colocou seios que se desenhavam como montes. Os homens pensaram que fossem feitos para sua escalada.

Deus fez as mulheres carinhosas, aconchegantes, sensíveis. Os homens pensaram que elas sempre deveriam ser suas mães.

A criação de Deus foi tão radiante. Que os homens, inclusive, saíram espalhando por aí
que aquilo só poderia ter saído de uma de suas costelas.


Abra seu coração minha menina, dance mais aquela balada, descarte os antigos bilhetes e renove as gavetas. Os pratos, as xícaras ficaram sobre a pia no dia de hoje. O sol abrirá e não será para secar as roupas que tiveram que ser lavadas após uma jornada estafante de trabalho. Hoje o sol chegou para secar as lágrimas derramadas do amor que se foi, das palavras do chefe grosseiro, do filho que teve que ficar febril com a babá.

Minha amiga ele não voltará para assumir o filho dessa gravidez imprevista. Depois de tantos anos quem diria que ele lhe trocaria por outra com a metade de sua idade. Mais uma porta fechada, mais um abuso da sua sexualidade, mais uma traição jurada de pés juntos que não aconteceu. Será que Deus algumas vezes adormece em nós homens? Porque Deus só existe naquilo que é belo.

Deus fez as mulheres com pernas lindas. Porque sabia que teriam que caminhar muito
para provar sua força nesse mundo dos homens.


Deus fez as mulheres com os quadris flexíveis. Porque sabia que nesse mundo rígido
alguém teria que trazer a paz.


Deus colocou seios como se fossem dois montes nas mulheres. Porque elas teriam que peitar muito preconceito para poderem brilhar.

Deus fez as mulheres carinhosas, aconchegantes, sensíveis. Porque isso é da natureza de Deus.

Paralelas.



Coisas que só se encontram no infinito.

Não amo mais quem não me ama. Só jogo no time de quem me da bola. Noves fora é nove. Não tenho mais tempo para quem não tem tempo pra mim. Nunca é muito longe e longe é coisa de quem não quer ir por preguiça.

Paralelas: alma-gêmeas, cara metade, tudo que faltava em mim.

O Céu não vai mandar alguém e se mandar, será um anjo, e os anjos não tem sexo.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Água Benta.


Talvez o poeta também finja que as horas não passem. Aí em um minuto pode estar uma eternidade de minutos que vão se escrevendo em muitas PESSOAS.


Como chove muito hoje em Porto Alegre, escolho um dia de muito sol. O que acontece no telhado são pingos, uns molham a folha do papel e os outros, deixo-os para que sejam bebidos pelas calçadas que nunca andei. Nós todos temos sede de alguma coisa. Mais uma vez vou ao encontro da água benta. Sei que D. Merci guardou em algum lugar. Não faz por mal. Só tem essa mania de querer sempre colocar as coisas em ordem.

Laços.


Fitas mimosas, laços para dar nó nos tênis, laços quando queremos dar um charme especial no pacote de presente.


O amigo que chora ao nosso lado, o irmão que oferece seu ombro quando nos separamos, o Babálorixá, o Padre, o Pastor, o Xamã. O ônibus se afastando da rodoviária deixando as nossas raizes para trás e, contar que indo para frente, iremos encontrar novos laços para vencer o novo destino. Placas verdes. Agora, pé na estrada.


O boiadeiro, o marinheiro, o gaúcho, o cangaceiro, o jangadeiro.
O amor que escapou, o porto que ficou mais alegre, o chimarrão alcançado com o coração, o sonho de que amanhã possa chover e não se precise partir.


Laços com o passado. Laços com o presente. Laços com o futuro.
A ex-namorada poderia voltar, remexer a agenda e procurar algum endereço, folhear o album de fotografias da família, esbarrar numa velha amiga no shopping, que virou colega, que virou passado.


Ir buscar os filhos no colégio, tentar estudar novamente, ler aquele livro que está empoeirando sobre a estante, mandar concertar o carro, começar a juntar um dinheiro para as férias, atualizar a lista de emails, trabalhar com felicidade, ter felicidade ao trabalhar. Colocar no presente o verbo para que os sujeitos possam agir. Ligar, combinar de ir dançar, convidar alguém para um café, comprar um vestido novo, passar batom, cortar o cabelo, não temer o espelho, sacudir a poeira e entender que se alguma coisa foi perdida no passado deve ter sido um presente. Um presente com a natureza. Um presente com a oração. Um presente com o presente.


Fazer planos, entregar-se, aceitar uma proposta de casamento, parar de “ficar” e assumir um compromisso. Dizer sim, não temer um não. Ingressar em rodas de capoeira, em rodas de discussão, em projetos que olhem por aqueles que ninguém olha por eles. Encarar o futuro como um grande laço. Aquietar a mente, unir as partes, compor os fragmentos, esquecer essa coisa hiper e tratar mais de perto tantas coisas micros que devem ser feitas para aumentar a paz e reduzir a guerra.


Ao invés de termos laços que amarrem, que prendam, que sufoquem, que afoguem, que machuquem, que escravizem, podemos ter os que embelezam. Laços que não temem perder porque não se preocupam em ganhar. Laços que não pensam em eternidade porque estão livres para viver o tempo. Laços que se fazem e se desfazem naturalmente: sem traumas, sem seqüelas, sem birras, sem culpados, sem adeus. Laços que vão e voltam, que voltam e vão, feitos de verdade. Bem-ditos laços de Deus.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Vírgula.


Dois segundos podem não representar nada para quem o despertador acabou de tocar. Para o nadador pode ser o tempo entre infelizmente não deu e a conquista. O limite é engraçado. Ele dá risadas de nossas afobações e perdoar parece não ser o seu verbo predileto. A calça um número a menos que não entra, não perdoa. Os pés dentro dos sapatos apertados, não perdoam. A cama de casal enorme que não passa pela porta do novo apartamento minúsculo, não perdoa. A distância, não perdoa.


Temos passado uma eternidade desenhando nossos triângulos, nossos quadrados, levantando cercas por aqui, privatizando sentimentos por ali, contendo aquele sorriso, levando para casa aquele gosto de limão pela azeda resposta que ficou trancada na garganta. Tudo porque é preciso envelopar, reservar-se, dar um tempo, contar até 10. Será que o tempo esteve na nossa mesma escola e aprendeu essa matemática do amanhã eu faço?


E se pudéssemos fazer tudo? Tomar a bebedeira e não ter ressaca. Passar na frente da luz e não ser multado por velocidade. Deitar-se na rede do vizinho e ainda tomar o sol exclusivamente para nós. Chupar o sangue e revelar-se como vampiro de água benta. O limite está na beleza, ou faz a beleza, ou é a beleza.


A beleza é vírgula porque carrega a textura do recriar, reinventar, reescrever. Não é reticência porque se não envelheceria. Estaria com aqueles olhos reticentes, enrugados pelo tempo que não fez. E a beleza não envelhece, sem limites, ela tem a propriedade interminável de ganhar outros desenhos. Naquela manhã Beatriz soltou os cabelos e voou. Foi pintar sua casa nova.

Óculos Escuros.


Mais dia, menos dia, vai entrar a primavera e o céu vai ficar mais limpo e poderemos ver as estrelas com mais facilidade.

O Lorenzo desenha suas estrelas nas suas folhas de papel. Algumas vezes elas são de seis pontas em outras são de cinco. Vejo que nem sempre são amarelas, percebo que ele permite uma constelação com estrelas verdes, prateadas, azuis e até mesmo negras. Pérolas negras.
Não acredito que as televisões, as colunas sociais, os comentaristas de futebol, os critícos, a publicidade, ou seja lá quem for que tenha poder de convencimento sobre o outro ou muitos outros possa desenhar suas estrelas como as do Lorenzo. É fácil colocar um spot sobre algo e fazer esse algo brilhar. Mas, a estrela, essas de cinco ou seis pontas, feitas da matéria pura da inocência, permanecem brilhando mesmo no escuro.

Podemos acreditar que o Mercedes-Benz seja uma estrela, podemos acreditar que a escandalosa da Vanessa Camargo seja uma estrela, podemos acreditar que os bonitinhos como Felipe Dylon, ...sejam estrelas. Até é possível supor que pessoas doentes pela fama como a Adriana Galisteu, o Faustão, o Gugu, a Xuxa, as nuas da Playboy, os exibidos da Caras, os insanos das páginas amarelas da Veja, os trangênicos da música sertaneja e do pagode, ou as mais novas constelações de safados que brilham com suas desonestidades nas CPIs sejam estrelas. Mas, as estrelas brilham eternamente, mesmo não estando lá.

A juventude, a beleza, a pele esticadinha, o corpo, não são suficientes. Com as estrelas as progressões são diferentes. A estrela quanto mais velha, mais bonita fica. Quanto mais o tempo passa, mais charme. Os dias contam positivamente para a sua história. Os anos não às apagam.

Nunca mais vi a minha professora que alfabetizou-me. Talvez ela passe essa vida inteira, Dn. Astra, sem que uma linha seja dita de quanto foi belo o seu trabalho. De como fez pessoas melhores, de como sua luz, acendeu luzes. É um equivoco acreditar que estrelas sejam rostinhos sem espinhas, bundas durinhas sem ou com silicone. Gente que não faz e ganha muito.

Lá atraz, entre os povos tribais, isto tudo estava relacionado com os sábios, os bravos, os mágicos, aqueles que nasciam com alguma diferença. Tão diferente para um mundo que só aceita iguais.

Coisa chata essa riqueza.

Aí canta uma musiquinha fica de estrela por algum tempo. Aí escreve um livro de auto-ajuda e fica de estrela por algum tempo. Aí faz um programete de auditório só com bobagens e fica de estrela por algum tempo.

Mais dia, menos dia, vai entrar a primavera e o céu vai ficar mais limpo e poderemos ver as estrelas com mais facilidade. Não dá para crer que estamos fadados a andar pelo resto de nossas vidas de óculos escuros.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Piano.


Somos senhores dos nossos destinos ou os nossos destinos são nossos senhores? Não precisamos mais do que dois olhos para enxergar. Muitos, não precisam mais que um. E outros enxergam mesmo sem nenhum. Viemos de alguma fábrica, que desconhecemos o endereço, mas ela já pensando no caso de troca ou devolução nos mandou completos.

Completos para ir a busca da nossa própria felicidade.

Colocar nas mãos de outro nossa felicidade deveria dar cadeia. Temos ficado presos aos elogios de tantos fulanos e ciclanas. Uma comédia. Um circo. Uma novela pior que os piores pastelões mexicanos. E o resultado de tudo isso é geralmente pena de morte. Morte de nós mesmos.

Uma receita mal elaborada é aquela que nunca dá certo. Milhões de pessoas tentam e a massa continua abatumando. Sempre falta um molho. A coisa ou fica muito salgada ou a coisa fica muito melada. Colocar nossa felicidade nas mãos de outro é uma receita que nunca dá certo.

Vá para frente do espelho e tente ficar bonita para você mesma. Leia novamente aquele relatório e pergunte para dentro de você se ali está o melhor de você? Ao acabar de dar aquela aula responda-se: era o melhor de mim.

Vamos acabar com os intermediários da nossa felicidade. Tipos que tem nomes como alma gêmea, cara metade, o pedaço de mim, a metade afastada de mim.

Nenhum navio fica para sempre no mesmo porto. Quando o senhor da nossa felicidade nos dá alforria, então como agir com a nossa liberdade? Não importa porque foi. Foi porque se tornou adulto, porque cansou da nossa cara, porque ficamos. Choramos. Não choramos pela partida, choramos mesmo porque mais uma vez é hora de conduzirmos nossa própria felicidade. A história pode ter um cenário diferente, mas é sempre a mesma. Ficamos num vazio danado.

Estamos precisando de carinho, mas é do nosso carinho. Estamos precisando de reconhecimento, mas é do nosso reconhecimento. Estamos precisando de amor, mas é do nosso amor. Estamos precisando sonhar, mas é o nosso sonho. Ninguém tem a mão tão grande para ir tocar lá dentro do nosso coração. Ninguém tem as palavras tão apropriadas para convencer os nossos ouvidos e nenhum sonho pode terminar em bem –me-quer, se nós mesmos não formos os protagonistas dele.

Um piano pode ser tocado com quatro mãos, mas cada par de mãos têm que saber exatamente que, se acaso aquele outro par de mãos não estivesse ali, a vida seria tocada com a mesma beleza.

Cinema.


Gosto de filmes, mas filmes que falem de amor. Não precisa ser de um amor vivido necessariamente por duas pessoas. Mas um olhar romantico. Olhar romantico sempre faz o coração abrir-se em arcos. Acontece tão pouco belos romances na vida real.

Na verdade gosto muito de cinema. Pode ser para namorar ou só para estar lá. As pipocas de casa são gostosas, mas as do cinema dão uma sensação de serem feitas especialmente para aquele passeio. Um passeio naquela tela gigante. Um passeio por aqueles signos. Sou de Leão e você?

Só costumo convidar as pessoas especiais para ir ao cinema comigo. Só pessoas especiais podem ficar com a gente numa sala a meia luz, num silêncio em conversa.

Os cinemas são maravilhosos. A luz atravessando a sala como se atravessasse nossa própria história. Os olhos acompanhando o próximo acontecimento como se aquelas vidas ilusórias fossem nossas próprias vidas. Talvez não? São.

A vida pode iniciar meio salgada e esperamos pelo final doce. Os bons filmes nem sempre acabam tudo nas mil maravilhas. Na vida é o inverso. As grandes vidas acabam sempre se dando mal.
Quando chegou a televisão disseram que o cinema ia acabar. Quando chegou o VHS disseram que o cinema ia acabar. Quando chegou o DVD disseram que o cinema ia acabar. Insistimos em acreditar que o que é bom pode acabar. Só acaba o que é ruim, se não fosse assim, as coisas não tinham razão de ser. Como podemos imaginar que o beijo vai acabar, que o bilhete cheio de carinho vai acabar, que sanduiche com queijo, presunto, tomates e umas folhas de alface com muita maionese, isso pode um dia acabar? As lua cheia permanecerá existindo sempre que houver alguém com vontade de se declarar para alguém.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Cobertor.


Vi aquele pedaço de aurora quando mal os olhos da lua iam se pondo nas vistas do sol. Retalho de algodão primoroso. Dei a costureira para que fizesse um bom e quente cobertor. Seria usado para cobrir o novo amor ou o amor que se foi e deixou os lábios gelados.

Não é uma loja, é um armarinho. Costura para as beatas da igreja que é em frente, algumas encomendas de reparação e bainhas que já se arrastam contando as histórias dos paralelepípedos. Faz alguns modelos e expõe na sua vitrine para vender. Quase ninguém compra, mas há muito aquilo deixou de ser um comércio para ser um ofício. Arrepiou-se quando abriu a caixa. Com os dedos furados pelos anos de costura tirou lá de dentro a minha fazenda. Falou-me que usaria o tear de pregos e o estilo seria com ponto ziguezague, toques de escama e algo mais infantil para não perder a matéria angelical. Continuou dizendo que não ficaria maior que 2 metros de cumprimento por 3 de largura: tamanho solteiro.

Basta-me aquecendo os olhos da ilusão. Será razoável quando a dor me parecer insuportável, o dinheiro não me for sinônimo de riqueza, o vinho não simbolizar o sangue do cordeiro, a crença não pedir trem para a guerra e o sacrifício não for uma forma de esconder a falta de prazer em acender pelo menos mais um fósforo.

Só após meia dúzia de meses a danada marcou para me entregar a encomenda. Fui atacado de tamanho ciúme – o cobertor tinha sido usado. Ensaiei algumas palavras ofensivas, busquei alguns verbetes mais que especialmente feios, mas antes de tudo isso, ela me disse que Clara teve noites e dias de muito inverno, mesmo quando o sol era radiante. Perplexa com tanta angústia além de tentada cedeu aos pedidos da moça.

Nunca mais vi a costureira, mesmo passando diariamente em frente ao seu armarinho. Nunca conheci Clara com quem para sempre ficou aquela peça. Sei que Clara curou-se, teve filhos e foi ser feliz. Abri a janela pela manhã e lá estava novamente o pedaço de aurora. Dessa vez não o peguei. Colocar em cativeiro o que é livre pode passar do atelier para a prisão.

cHOCOlate QueNTE.

As coisas podem ser iguais, mas elas sempre são diferentes.

Olhar para o calendário pode ser desconfortável algumas vezes. O tempo que passou parece não ter passado. Não somos convidados a viver, somos obrigados a viver.
Se de alguma forma parece tarde para iniciar algumas coisas, por outro lado é sempre cedo para não ir. A mesma janela que aponta o vento, aponta também o sol. Se tiveres tempo vá, se não tiveres tempo vá também.


Usávamos o amor como forma de nos entender, hoje usamos o amor como forma de nos desentender. Esquecemos que o mesmo porto que trás aquele que partiu é o que leva aquele que pode retornar.

A vida andava mais devagar.
Os trens andavam devagar e chegaram os automóveis.
Os automóveis andavam devagar e chegaram os aviões.
Os aviões andavam devagar e chegou a Internet.


Fizemos um mundo rápido. Tão rápido que não temos mais tempo para sentir. Sinto-me neste momento com vontade de tomar chocolate quente. Roupas bonitas não aquecem o coração.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Lisa.


Olhou para aquela negra sentada na primeira fila do Museu do Louvre. Em um francês impertinente carregado no seminário de estética da arte ia falando do efeito subtil do Sfumato. Não conhecia o perfume de Da Vinci, se lá que o usasse, mas existia um cheiro de anatomia e tinta óleo no ar. Anos atrás tinha dado risadas das bobas pesquisas de Pierre Verge e o Candomblé, para ele mortos para lá e vivos para cá, essa coisa de mortos falando com vivos era tremendo bacanal filosófico.

Parou um instante a palestra e indagou a moça – francesa? Latina? De onde vem todo esse interesse pela arte? A moça respondeu apenas norte de Oyó, que o fez quase automaticamente franzir as sobrancelhas. Em um Yoruba admirável ela desfranziu as sobrancelhas do menestrel graças à intervenção de um tradutor: Oyó localiza-se na Nigéria, foi um grande império da África Ocidental, no século XV, hoje a república da Nigéria é um dos 9 países que mais rapidamente cresce no mundo, mas a maioria de sua população vive em profunda pobreza.

Era descendente do segundo Príncipe do Reino de Yoruba, Oranmiyan. Tinha crescido ouvindo aquelas histórias de grandes feitos, bravuras e por fim desastre. O poder era um desastre, a pobreza era uma guerra a ser combatida, não há paz dormindo ao lado da miséria. Cursou a universidade de Belas Artes na Nigéria, centavo por centavo do ganho da mãe inclinada no tanque. Mas o título nada mais valeu do que um emprego de camareira em hotel bonito na Inglaterra. Acima de tudo isso se sentia princesa do seu reinado, onde as estrelas são gratuitas para quem senti o céu.

Não podia deixar de lembrar aquela mulher com uma expressão encabulada e de certa forma tímida. A negra trazia um turbante na cabeça tal qual um véu típico de mulheres grávidas do século XVI. O vestido verde escuro. Regaço, pescoço e face: uma semelhança só que com uma tintura negra e mais jovem. Ao fim de sua palestra dirigiu-se até a moça e com muitas e muitas desculpas pediu se era possível que trocassem correspondências. Lisa sem maiores cerimônias rasgou um pedaço de papel e escreveu seu email. Que por meses ele a investigou, inclusive descobrindo que tinha uma criança e teria se separado do marido por ser impotente, alcoólatra e várias vezes teria tentado agredi-la.

Oramni repetidamente foi chamado atenção no colégio por seus desenhos de heróis, lendários guerreiros orixás e mesmo fantásticos monstros. Mas o chamado a atenção, algumas vezes era posto de lado. O menino era algo sobrenatural em desenvolver retratos em pinturas a óleo para as feiras de arte de sua escola , pública em bairro classe média no norte de Salvador. Aquilo passou a ser tão significativo que alguns outros estudiosos mandaram chamar uma sumidade em artes renascentistas denominado Angello Florentino para que avalia-se e quem sabe pudesse inclusive arrumar alguma bolsa para que ele estudasse em uma escola que pudesse dar mais subsídios para desenvolver suas habilidades, porque não dizer, talento surpreendente.

Era muito tarde da noite quando vasculhava os temas de Oramni. Ria das peripécias do menino com a tinta, com o grafite, com a cera, com seja lá for o que fosse. Eram centenas de retratos, de paisagens, de deuses, de mortais. Temas e exercícios nada feito. As folhas eram um ateliê de arte. Bem, mas bem no final do caderno existia um envelope escrito feliz dia das mães. Não entendeu porque não entregou para ela e o abriu. Lá estava ela, negra – MonaLisa.
Comprou passagens. Recebeu os emails dele e não respondeu. Recebeu outros tantos e permaneceu escondida. No final daquele inverno se sentia tão só que não resistiu. Apenas uma frase desabafava: você sabia e não me disse. Você sabe do restante e também não confessará.

Através das modernas tecnologias ele os encontrou, descobriu onde moravam e a hora e dias que iam a pracinha. Enquanto Lisa balançava o pequeno Oramni ele avistou ela em sua beleza que se eternizava no próprio tempo. As 17 horas eles o levaram. Embarcou em um avião para um seminário na manhã seguinte na Galeria da Academia de Belas Artes de Florença. Abraçaram-se, abanaram-se, eles viram o seu avião subir. Nunca mais ele tocou nesse assunto, o que não quer dizer que nunca mais esse assunto tenha tocado neles.

Cafés.



Cafés não são o melhor pretexto para uma conquista, mas deveriam ser.
Os cafés têm o mesmo charme do amor.

Café requentado é como amor que foi e tenta voltar. Algumas pessoas também o chamam de café passado. Amores requentados tem um gosto amargo da desilusão de ontem. Tem um cheiro de gavetas empoeiradas.


Algumas pessoas gostam de café gelado. Aquele amor que nunca está. Amor que sai pela tangente. Aparece no sol e desaparece com a chuva.

O amor que pega fogo e queima a língua é como café quente. Infinito enquanto dure. É um café bom, mas arriscado. Pode se perder as nuances do gosto. O gosto do afeto, o gosto de estar junto. O cativar.

Inventaram o café descafeinado. Dizem que é bom para quem tem problemas no coração.

Cafés... Não têm o glamour das champagnes. Não são encorpados como os conhaques. Não são despojados como as cervejas. Não são tropicais como as caipirinhas. Talvez se pareçam muito com os cinemas. Negros e misteriosos. Psicanalíticos e íntimos. Românticos e sonhadores.

Paremos com isso por aqui que o café está passando e como amor ele também é sempre gostoso de ser apreciado novinho.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Meridiani Planum.


Estava deitado na rede enquanto a mãe trançava o cabelo da irmã. Olhava para irmã e olhava para televisão. Casa pequena, o chão e o piso eram de barro sapê e o pai ainda não tinha chegado da roça. Os outros irmãos maiores também não estavam, todos saíam cedo com suas marmitas e suas foices para o trabalho. Faltava pouco para que ele também os acompanhasse.


O homem repórter falava num tal planeta chamado Marte. Dn. Abigail já tinha comentado sobre esses planetas em suas aulas de Geografia que chamava de Geografia Sideral. Mas a voz, o olhar e aquelas fotos da televisão deixavam o assunto muito mais interessante que quando Dn Abigail contava.


O homem de gravata dizia que a Nasa, agência espacial americana, divulgou nesta quarta-feira em seu site uma nova imagem em alta resolução da cratera Victoria, situada na pequena região plana chamada de Meridiani Planum, próxima ao equador de Marte. A fotografia foi tomada em mais de um ângulo inclinado pela sonda espacial Mars Reconnaissance Orbiter, diferente das imagens captadas anteriormente em outra missão da Nasa. Ficava imaginando se tinha mais comida em Marte, se tinham crianças, brinquedos no aniversário e no natal, se tudo também secava quando fazia sol bravo, se tinha bolo de chocolate de verdade. Pára de pensar bobagem e vai buscar água menino. Sempre ficava impressionado como as mães têm a capacidade de ler pensamentos.


Dn. Abigail numa dessas suas aulas de Geografia Sideral disse que para ir ao espaço tinha que ser da NASA e se transformar em um astronauta. Desenhou seu uniforme em uma folha de papel, pois sabia que não deveriam ter do seu tamanho, colocou no envelope e guardou dentro do seu travesseiro. Pela manhã bem cedo entregou para seu Antônio colocar no correio com as devidas recomendações. Não abra - é confidencial.

A paz vale a Pena.

Toda vez que falamos em paz, logo pensamos em não-violência e rapidamente estamos diante da imagem daquele camarada de cor de cuia, ocoluzinhos e franzino, chamado Mahatma Gandhi que conquistou a libertação da Índia através da paz.

Com certeza essa paz é o sonho de consumo de todos nós. Mas, como um sonho, vamos deixando para adquiri-la amanhã, depois de amanhã, mais tarde. Até que isso se tornou um tirar sozinho na mega-sena. Acredito que desta forma não estamos indo a lugar algum, ou melhor, estamos fazendo o jogo daqueles que querem fazer a guerra: o pessoal do tráfico, a galera dos políticos corruptos, a turma da indústria bélica, o comando vermelho daqueles que exploram trabalho de qualquer espécie infantil ou não, a gang dos gigôlos que vivem de prostituição.

A paz começa dentro de casa. Não essa casa feita de alvenaria ou madeira. Falo dessa casa que se chamada alma. A paz começa na alma. E tudo que é feito pela alma se torna grande porque é feito pequeno. Já não temos paz em lidar com nossos filhos. Quando chove ficamos bem loucos para sair de casa e aquela criançada não destruir tudo. O que aconteceu? Ficamos tão inteligentes que não podemos mais sentar no chão e jogar três marias?

Não dá para esperar que alguém saiba o que seja paz quando pingos de chuva caem pela janela e é socado na frente de uma TV. Desaprendemos a conviver em grupo, estamos todos espremidos dentro dos nossos quartos, da alma, pensando no que?

Temos uma relação completamente agressiva com a natureza. Não estou falando das matas que são destruídas para se fazer shopping, nem dos animais que são mortos para fazer casacos de pele. Estou falando das formigas que derrubamos com uma porrada sobre a mesa. Estou me recordando que tempos atrás um tio meu mandou cortar uma árvore porque estava quebrando a calçada. Onde estamos com a cabeça? Como podemos viver em paz quando destruímos diariamente outras vidas com total descaso. Ao matar um animal, mesmo um rato, fico pensando como se sentirá a mãe dele quando não receber mais notícias. Quando não aparecer para o almoço de domingo. Que tristeza. Temos espalhado uma tristeza danada no nosso dia-a-dia. Se imediatamente não aprendermos a sorrir e a fazer sorrir, não vamos ter paz. Brincar é o play ground da paz.

Estão ali se mordendo no trânsito, como cobras um puxando o tapete do outro no emprego, raposas são astutos em tirar proveito naquele negócio, bichos - preguiças não levantam aquela bunda nem pra alcançar uma faca, ainda tem a espécie abelhinha, só melsinho na chupeta, sem falar nos urubus, só batem em gato morto. Ia me esquecendo das gralhas que entram só pra arrumar confusão. Cadê as araras azuis, os golfinhos, os sabiás, as corujas, os beija-flores. Não dá pra ir atrás da paz do Gandhi sem se importar que a sua amiga perdeu o namorado e está muito aflita. Não dá para querer paz virando as costas pra aquele filho do seu vizinho que você viu fumando maconha e não vai contar nada para os pais dele, pois não quer se incomodar. A paz passa na nossa vida diariamente pedindo pra que se abra a porta. Abra a porta para conversar com aquele colega que chegou com ares de depressão. A paz pede que se abra a porta para tomar um sorvete, ir buscar uma rosa, cantar uma música desafinadamente, tirar um tempo para agradecer o que não veio porque o que está para vir será muito melhor. A paz pede para que não façamos guerra com a vida.

É esse pequeno mundo que tem que mudar pra gente chegar naquele grande mundo do Gandhi. Quando vencemos através da paz a história se repete - ganhamos a liberdade. A liberdade para amar, para ter prazer, para sabermos para onde estamos indo. A liberdade de viver.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Vazio.




Ilária estava com manchas. Não daquelas que os pneumologistas diagnosticam nos pulmões dos fumantes. Ilária estava com manchas no coração. Profundos vazios que ao longo do tempo foram se desenvolvendo por ir trocando isso por aquilo.



O médico era um sujeito pequeninho de sobrenome Tristão. Cabelos quase longos e aparência taciturna. Poucas palavras. Agitado mas lúgubre. Inteligente mas escorregadio com as palavras. Enfático, mas num tom sonolento. Foi recomendado por aquele que era amigo daquela que conhecia a então concunhada de Ilária. Como já tinha passado em vários outros médicos foi cair naquela mistura de cientista com traços de alquimista.



A primeira vez que Ilária o viu, disse a si mesmo que aquilo tudo era bobagem. Quando o médico Tristão deu o diagnóstico só não deu boas risadas em sua cara, pois ele já tinha uma certa idade e respeito é uma coisa que não dá pra comprar na prateleira do supermercado. Vá para casa e volte amanhã, foram as palavras do sujeito dentro do seu avental branco, camisa lisa e gravata listrada. Quis indagar sobre os remédios e ele nada falou. A acompanhou até a porta e disse até logo.



Na manhã seguinte num vasto quadro negro tinha uma receita escrita a própria punho. Ele disse a ela simplesmente – escreva. Não tenha preguiça, tenha vontade. O preguiçoso anda na linha de seu próprio desafeto do não fazer.



Sobre as manchas da esquerda são os vazios que vieram com a má utilização do tempo. Trabalhe menos e preencha-os com passeios pelo parque, tome sorvete vagarosamente, quando o despertador tocar não pule instantaneamente da cama, sorria pelo menos 5 vezes ao dia por aquilo que lhe faria chorar e chore por aquilo que deveria sorrir.



As manchas da direita indicam vazios da má utilização dos recursos financeiros. A casa luxuosa e impecável, troque por aqueles acampamentos que não fez na adolescência. O chefe estúpido e intolerante troque por aquela forma de vida que foi matéria de risos entre os amigos. As jóias, os presentes, o automóvel, os aparatos eletrônicos, os copos de cristal, as passagens aéreas para aquela viagem cartão postal, o curso de idioma para impressionar, as noites mal dormidas para pagar tudo isso dê um sentido. Sinta Ilária que a casa só é bonita quando é vivida, que um automóvel são apenas pernas circulares , que jóia é o beijo, que o chat é um choque no tocar, que a solidão continua solidão mesmo no mar azul da Tailândia. A melhor língua é a que aproxima e o melhor sono é o que sonha.



As manchas no centro do coração são referentes aos vazios do amor. Estão ali contando das traições sofridas, das depressões, pelo que foi e não voltou na mesma intensidade. Existe uma grande gaveta bem ao lado do coração – foi inteligentemente criada para que exatamente fossem guardadas e tivéssemos a possibilidade de recomeçar. Pare de alimentá-las, porque sem alimentação perdem sua força. Alimente-se da experiência do encontro. Diga que quer, cante que pode entrar, respire que é dessa vez, transpire amor. Dizem que anjos são sujeitos muito atarefados e atrapalhados. A fila para encontros está cada vez maior. Deixe o corpo perfumado e a alma embebida em vinho sauvignon.



Sobre tudo aquilo que estava escrito Ilária chegou em casa e chorou desatinadamente. Quando pegou aquela velha carta que seu noivo contava que estava desmanchando o relacionamento porque tinha se apaixonado por outra mulher. Sorriu.