sexta-feira, 1 de julho de 2011

[raça]

Tinha dias que ficava pensando na vida. Quantos sins em vão e outros tantos não jogados pela janela. Pegava seus cadernos de apontamentos e certo dia os rasgou na frente dos alunos. Recebeu carta de advertência, fez reuniões com os pais e no fim com o rabinho entre as pernas se desculpou.


Dentro dele nada poderia acontecer sem separação. Como podemos fazer de conta que existe um caminho que contempla as diversidades? Que podemos colocar paixão num prato que cabe todos os temperos, mas na hora da liberdade, a coisa é um assalto. Estamos lá roubados! Exclamava em silêncio que religiosidade de verdade é a fecundação de todas as raças. Mas não se separava dos seus próprios medos.

Saiu da Escola bastante contrariado e mesmo vendo o carro vindo em sua direção, deixou que fosse atropelado. A merendeira quando viu o seu corpo nem esperou para que comentassem o estado para se por a chorar. O guarda dali mesmo da esquina deu um jeito para fazer um chamado para a ambulância que não tardou a se botar a berrar como uma lavadeira, o que foi uma epopéia para cidadezinha de pouco mais de 8 mil habitantes com apenas duas escolas fundamentais e uma outra de ensino médio.

Duas ou três vozes zuniam em torno dele como se fossem mosquitos. Ia criando intimidade com a morte. Sentia a hemorragia interna como um sangue que ia fazendo um chafariz por dentro dele. Viajou quase que por meia hora para obter um atendimento de um Hospital e não um posto de saúde. Tempo o suficiente para ir se despedindo lá de dentro da ambulância de Margarida que era a senhora que cuidava de lavar a sua roupa, pregar um botão e ainda preparar um belo feijão. Por hora não desejava passar na casa de ninguém, mas mesmo assim fez uma visita aos 5 irmãos, viu sua mãe na cadeira de balanço da velha casa onde viveu uma infância feliz e ainda se pôs no portão para admirar a beleza de Gertrudes, mulher que nunca confessou o seu amor.

Ouviu quando o médico disse que ele não tinha saída e deu as costas. Com os olhos quase apagados viu uma criança, um menino que não passava de seus 25 anos entrar na sala com um guarda-pó branco em um estado impecável. Não sabia quantas horas tinham se passado quando acordou e o moleque estava ali na sua frente e apenas lhe disse: bem vindo a vida seu moço. Por sorte sua e azar do outro paciente que foi atendido pelo Dr. Aldemar e não por mim, você ficou e ele se partiu. Um transplante de coração meu amigo, o cavaleiro ao lado perdeu-se em uma curva e nada sobrou do acidente, nem mesmo ele.

Nunca gostou de samba e começou a freqüentar gafieiras, começou a ser abusado com as mulheres. Tinha uma outra cara para enfrentar as coisas. Tinha uma raça, um peito, uma dignidade como era presente nos olhos daquele negro que batia dentro dele. Tinha uma felicidade daqueles que tem prazer, um morro, uma história, uma ginga. Dentro dele, ele sentia uma gente que fazia alvoroço em suas veias. Estava muito diferente de antes, quando era apenas um filósofo paranóico e com grandes lentes garrafais.

Tanto teimou que conseguiu o endereço dos pais do negro que lhe doara o coração. Pegou o trem e foi parar em bairro nobre da capital. Já tinha chegado até aqui, não desistiria. Bateu a porta e uma senhora passada da meia idade o atendeu, tanto ela como a Governanta eram brancas como papel, mais que germânicas, mas muito mais. Perguntaram quase que juntas o que desejava e muito sem jeito perguntou sobre o rapaz. A senhora mais clara e mais velha encheu os olhos de lágrima e disse que tinha falecido em um acidente de automóvel. Pediu perdão e ia se retirando quando ela perguntou se ele o conhecia da escola onde lecionava. Ela viu a cara impressionada do rapaz e disse a ele que era seu único filho e tinha sido adotado logo quando bebê. Na noite do acidente vinha da universidade jantar com os pais em comemoração a ter passado em sua tese de PhD: Métodos Práticos da Teoria Cartesiana.

[recôncavo porto alegrense]

Uma negra gorda, mas muito mais que gorda, com sua bicicleta. Uma perimetral, mas muito mais que movimentada, se ilumina com o visor do celular de uma negra gorda e sua bicicleta. Noite e estrelas.



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Uns três mendigos dividem um pão. Na mesma sinaleira dá para ouvir os berros de 3 crianças no carro ao lado que brigam por chocolates. A fome de ter sempre é maior em quem já tem.



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Três médicos discutem quem deverá buscar o prontuário do doente. Ele paciente se oferece. Os médicos com uma risadinha amarela justificam que ele em outro momento poderá, mas agora infelizmente não dá. Os desocupados estão sempre ocupados e são aqueles que mais dão ordens os que causam a desordem. Chuva pela janela.