quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ilusão.

Carminha ria nas tardes de outono olhando pela janela. Ria porque as folhas caíam secas sobre a calçada e o velho as varria. Carminha ria porque o velho teria que após alguns instantes da calçada estar limpa ter que varre-la novamente.


O velho sorria varrendo a calçada. Ria mais ainda quando olhava para as folhas secas que instantes depois estavam novamente todas deitadas sobre a calçada. O velho olhava para o topo da antiga árvore e com a cabeça emitia um sinal de compreensão. Lá ia com a sua vassoura sossegadamente em direção das folhas.

Carminha observava o velho. Até porque o que tinha que olhar da janela para dentro lhe causava medo. Carminha chorava quando tinha que estar diante da sala vazia, dos inúmeros livros que se empoeiravam na biblioteca, das poltronas e do sofá que já faziam algum tempo que não abrigavam amigos de verdade. Mas, ria do velho. O velho estava gagá, esse era seu diagnóstico. Até se fosse neurologista, psiquiatra ou mesmo psicóloga poderia dizer que ele sofria de Mal de Parkinson, fosse afetado por alguma neurose, mas preferia crer que era mesmo um desocupado, além das folhas o que mais teria para fazer? A sua vida deveria ser um tédio absoluto.

O velho conversava com a árvore – Agora é hora de entrar, há uma manhã inteira de afazeres. Já lhe disse que Ernesta não gosta que perca tanto tempo com você. Ela insiste em dizer que os vizinhos me têm como um esclerosado, que nada tenho mais para fazer e que minha única ocupação é estar aqui indo e vindo com essa vassoura.

Ernesta chamava o velho e ele entrava. A casa não permanecia de cabeça para baixo porque Ernesta era tremendamente ordeira. Mas, que os netos tentavam, puxa como tentavam. Dinâmico, aquele era um espaço dinâmico. Os filhos, as noras, os meninos, os amigos, os amigos dos amigos e o seu amor. O velho e Ernesta com aquele amor que não se findava. Aqueles dois corpos que ainda se interessavam um pelo outro, que se comichavam um pelo outro e que sentiam o cheiro um do outro. Um perfume que não ia embora. Um perfume que já durava mais de 50 anos.

Carminha ia reparando sua tristeza no espelho. Que coisa é a solidão, ela dizia para si mesmo. Entra e se estabelece. Puxa sua cadeira, alinhava suas raízes, dispara sua injeção letal que induvidosamente vai causando seus danos vagarosamente. A escova de dente elétrica vai indo para um lado e para o outro automaticamente enquanto seus pensamentos não vão indo para lado nenhum. Que coisa é o abandono, que necessidade de um toque que nos massageie, que se inicie onde quiser, mas que alcance o coração. Carminha...Carminha... És uma mulher abençoada perto daquele velho que vistes pela manhã. És composta de liberdade. Um corpo nu para correr nas ruas. Um rosto sem rugas, uma vida pela frente, uma consciência, pois quem não tem equações? As equações, os dilemas, a dúvida, são resultado daqueles que são.

Além deles virem aos pingados nos dias de semana, aos domingos todos se reuniam para a boa e imbatível macarronada de Dn Ernesta. Iam chegando felizes, ela de avental os beijava com cheiro de cebola e sorriso nos lábios. Iam se atirando pelas poltronas, mexendo na terra, bisbilhotando a geladeira. As gargalhadas e as repreensões, iam se misturando com o barulho dos talheres e dos copos que iam sendo colocados sobre a mesa. O velho nunca deixava de brindar a vida, a felicidade, a Deus. Então, almoçavam. As crianças faziam muita algazarra, mas sem ninguém pedir, quando o velho começava fazer os seus brindes, se acomodavam a escutá-lo. Cresciam amando seus brindes e seu copo de vinho erguido lá em cima. Cresciam entendendo que a liberdade era tão simples. Tão jovem no copo daquele velho.

Era verão e não tinham mais folhas para o velho varrer. Carminha abriu a janela e o sol era muito forte, radiante e carinhoso. O velho estava lá, a molhar a árvore. Pensou em pensar algo quando surpreendentemente uma senhora abriu o portão e foi em sua direção. Carminha observou quando ela acariciou seus cabelos, ele se virou e abraçou-a pela cintura. Ela pegou um pouco d’água e passou em seu rosto e ele a beijou. A beijou na boca com o mesmo calor do sol, com a mesma força do sol, com o mesmo carinho do sol.

A janela a partir daquele dia nunca mais se abriu.

No outro outono o velho estava lá a varrer a calçada. A árvore depositando mais folhas e o velho as varrendo compreensivamente.

A partir daquele dia a janela não suportou o tamanho da sua ilusão e fechou-se para sempre. Carminha partiu. Talvez esteja viva, mas morreu.

pAZ.

Pode ser compartilhando o pão nosso de cada dia. Também está ali quando dançamos sem que nos envergonhemos do que os outros dirão sobre nós. Redentora é a paz porque pode estar no velocista e também é matéria do budista. Risonha é a paz porque pode estar em alguém que foi e enfim retorna. Mas, também é colheita dos que alimentam os que tem fome.


A paz vem na palavra sedenta em semear a verdade. A paz vem quando cantamos desafiando os afinados. Magnificante é a paz porque pode estar no mestre, mas também é professor o simples pescador. Pura é a paz porque não altera-se. Se o beijo não chegou hoje, sabe ela que se ele ficou para amanhã, é porque amanhã será o tempo certo.

A paz é cura, seja do médico ou do curandeiro, a dor em passagem, transformou-se em passageiro.

Pode ser a paixão por um ou pela humanidade. Também está ali amante e amado. Silenciosa é a paz do abraço, nas mãos que desembaraçam os cabelos, no ouvir, no querer que o outro se sinta em paz, para que em paz possa crescer. Silenciosa é a paz de quem é mãe de filhos alheios, é pastora dos que se perderam, é companheira dos que foram entregue a solidão.

Há paz no alto do monte e nas urbanas calçadas do mundo corriqueiro. Há paz na floresta ou no se tomar chocolate quente e rir-se mais uma vez dos bigodes criados, lembrando-nos quanto a felicidade nada nos custava.

Há paz no templo. No nosso templo. O templo construído dentro de nós. Só não há paz no que freia, no que não venta, no que seca, no que não mergulha, no que temendo, teme antes a si mesmo. Assim então, nasce a guerra.

A guerra nada mais é que a falta de paz. Um templo, um tempo em que os guerreiros são iludidos que possa haver alguma vitória permanente, onde não haja paz. Onde não há paz tudo é transitório - As infelicidades do passado, de uma hora para outra, mais uma vez podem se tornar presente.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Amada.

Cabe a ela dizer a quem dará o seu amor. Eles estão todos ali na volta, em suplicas, a namorando, a seduzindo, desejando-a: parada no centro observa-os. Corre para cá, se esquiva para lá, salta, vai. Todos, sem exceção, estão angustiados para ter com ela momentos de intimidade.


Regras? Nada de regras. A ela só cabe o prazer. Ela quer saber quem lhe dará mais prazer. As regras foram inventadas por eles. Eles que decidiram por não beber, eles que brigarão entre si, eles que acusarão de uns terem ultrapassado os limites dos outros, eles que sentirão dor, castigo e falta.

Ela deseja que eles se aproximem com carinho, mas também apreciará os que são menos habilidosos e mais fortes. Ela ama os fortes, os retranqueiros, os defensores. É parte da sua natureza selvagem. Ela ama mesmo o afeto, as carícias, o apego. Nesse sentido, ganhará sua cumplicidade quem amá-la usando a cabeça. Também lhe agradará ser acolhida no peito e ficará encantada com os que souberem dançar. Ela gosta da dança, o ballet lhe faz feliz. Mas, não é só o que conta. É um engano pensar que é tonta, é boba, enfim, ela não dá pelota pra qualquer um.

Confesso também acreditar, como outros tantos, ser ela feita de muito mistério. Talvez o que torne muitas das suas atitudes incompreensíveis. Uma caixinha de surpresas. Não estaria mentindo ao dizer que qualquer previsão de como agirá no próximo lance é no mínimo uma blasfêmia. Julga com o seu olhar e não com o olhar deles, já tão viciado pelas injustiças.

Para ela não há bons e ruins, foram eles que criaram isso. Entre mais afortunados e menos afortunados, não há distinção. Lidar com seus caprichos, sua beleza, seu humor hora trágico e hora cômico é o que realmente está em jogo, no jogo dela. Por isso não torce por nenhum deles. Solitária torce apenas por si mesmo.

O homem que outrora sempre se vestia de preto não faz o tipo dela. Ele a faz pensativa e racional, como eles. Ele a angustia. Uma angustia que se reproduz com maior intensidade, porque ele chama atenção deles, castiga-os e até mesmo tem o poder de mandar embora os mais eufóricos e ela admira esse tipo de homem. Os que o sangue ferve, trocam os pés pelas mãos, ficam de cabeça virada, chingam, esbravejam, vivem intensamente essa disputa por ela. Ela desejava que ele não interferisse, mas ela desejava mesmo é que eles não obedecessem a ele. Mas, eles reconhecem o seu poder. Soberano a eles e ela, soberana a todos eles.

Uns serão heróis, outros covardes e alguns serão tão inexpressivos que nada serão. Assim é que se dará esse encontro diante de uma multidão compacta. Há dentro deles, de todos eles um sonho, o mesmo sonho. O sonho de colocá-la na rede. Tudo inicia com um beijo. A chuteira graciosamente encosta seus lábios nos lábios da bola. Então ela está ali entregue, aos pés daquele que fará dela sua amada.

Um pouco menos do que platônico.

Ele telefonava para ela e ela telefonava para ele. Falavam de tudo. Falavam do seu dia, das suas amarguras, dos seus sonhos, das suas filosofias, do seu cinema. Minto, Não falavam de tudo, falavam de quase tudo. Não diziam daquele gostar, daquele convívio, do carinho que um sentia pelo outro, do seu desejo. Então, se convidavam para ir ao cinema e iam.


Viviam esse enamorar sem namoro. Esse estar junto sem beijos. Essa ida sem saber muito bem do retorno. Mas, o retorno sempre acontecia. Ela telefonava para ele ou ele telefonava para ela. Naquele espaço de tempo permaneciam ansiosos.

Queriam se ter, mas não encontravam o caminho. Entre uma cadeira e outra do cinema há uma grande distância. Entre uma palavra e outra há uma grande distância. Entre uma xícara de café e uma xícara de chá há um grande distância. Duas vezes choveu e estiveram tão próximos, o universo conspirava por eles e eles se encabulavam. Não sabiam dançar. Algumas vezes é bom dançar bem pertinho. O que não tem saída se torna uma porta que se abre.