quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Ilária




Ilária estava com manchas. Não daquelas que os pneumologistas diagnosticam nos pulmões dos fumantes. Ilária estava com manchas no coração. Profundos vazios que ao longo do tempo foram se desenvolvendo por ir trocando isso por aquilo.

O médico era um sujeito pequeninho de sobrenome Tristão. Cabelos quase longos e aparência taciturna. Poucas palavras. Agitado mas lúgubre. Inteligente mas escorregadio com as palavras. Enfático, mas num tom sonolento. Foi recomendado por aquele que era amigo daquela que conhecia a então concunhada de Ilária. Como já tinha passado em vários outros médicos foi cair naquela mistura de cientista com traços de alquimista.

A primeira vez que Ilária o viu, disse a si mesmo que aquilo tudo era bobagem. Quando o médico Tristão deu o diagnóstico só não deu boas risadas em sua cara, pois ele já tinha uma certa idade e respeito é uma coisa que não dá pra comprar na prateleira do supermercado. Vá para casa e volte amanhã, foram as palavras do sujeito dentro do seu avental branco, camisa lisa e gravata listrada. Quis indagar sobre os remédios e ele nada falou. A acompanhou até a porta e disse até logo.

Na manhã seguinte num vasto quadro negro tinha uma receita escrita a própria punho. Ele disse a ela simplesmente – escreva. Não tenha preguiça, tenha vontade. O preguiçoso anda na linha de seu próprio desafeto do não fazer.

Sobre as manchas da esquerda são os vazios que vieram com a má utilização do tempo. Trabalhe menos e preencha-os com passeios pelo parque, tome sorvete vagarosamente, quando o despertador tocar não pule instantaneamente da cama, sorria pelo menos 5 vezes ao dia por aquilo que lhe faria chorar e chore por aquilo que deveria sorrir.

As manchas da direita indicam vazios da má utilização dos recursos financeiros. A casa luxuosa e impecável, troque por aqueles acampamentos que não fez na adolescência. O chefe estúpido e intolerante troque por aquela forma de vida que foi matéria de risos entre os amigos. As jóias, os presentes, o automóvel, os aparatos eletrônicos, os copos de cristal, as passagens aéreas para aquela viagem cartão postal, o curso de idioma para impressionar, as noites mal dormidas para pagar tudo isso dê um sentido. Sinta Ilária que a casa só é bonita quando é vivida, que um automóvel são apenas pernas circulares , que jóia é o beijo, que o chat é um choque no tocar, que a solidão continua solidão mesmo no mar azul da Tailândia. A melhor língua é a que aproxima e o melhor sono é o que sonha.

As manchas no centro do coração são referentes aos vazios do amor. Estão ali contando das traições sofridas, das depressões, pelo que foi e não voltou na mesma intensidade. Existe uma grande gaveta bem ao lado do coração – foi inteligentemente criada para que exatamente fossem guardadas e tivéssemos a possibilidade de recomeçar. Pare de alimentá-las, porque sem alimentação perdem sua força. Alimente-se da experiência do encontro. Diga que quer, cante que pode entrar, respire que é dessa vez, transpire amor. Dizem que anjos são sujeitos muito atarefados e atrapalhados. A fila para encontros está cada vez maior. Deixe o corpo perfumado e a alma embebida em vinho sauvignon.

Sobre tudo aquilo que estava escrito Ilária chegou em casa e chorou desatinadamente. Quando pegou aquela velha carta que seu noivo contava que estava desmanchando o relacionamento porque tinha se apaixonado por outra mulher. Sorriu. 

geografia]


A escola tem que ensinar as pessoas a terem prazer e mais importante, que a idéia de prazer está relacionada há lapidar-se. Quando me refiro a prazer, também estou me referindo a abdicar, a estabelecer prioridades, a perder e a ganhar e o mais extraordinário, a aprender compartilhar. Se aprendemos a ter prazer, então aprendemos a caminhar pela honestidade, pela religião e desaprendemos a viver só nesse nosso próprio mundinho de ganha-ganha, troca-troca, se faz-eu-faço, olho-por-olho, dente-por-dente.
            Ele avistou uma mão bem lá no canto da sala. Olhos meio amedrontados, cabelo de trigo e sardas no rosto que iam quase a altura do busto. – Disse ao professor que gostava da idéia e se pronunciou. Poderíamos dar inicio refazendo a nossa geografia do coração.  Acabando de uma vez com essa coisa de paralelos e meridianos.  

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

África


Maria Degolada, Rocinha, Tronco, Favela do Ibatuma, Cruzeiro do Sul, Bangu II, Alagados, Caidinho do Céu, Ilha do Marinheiro, Baixada Fluminense, Favela da Maré, Trapiches... Pontos de luz e antenas de TV que são adesivadas nos morros.
Incomoda-me o mundo periférico e marginal que estamos construindo. Um mundo que não se alimenta, de comida e tantas outras coisas, enquanto outros esbanjam e jogam fora, comida e tantas outras coisas.
Reclamamos de boca cheia, mas tenho a sensação que não devemos medir isso a partir da desgraça alheia, devemos medir isso a partir dos nossos próprios castelos de ilusões.
Não consigo pensar em outra explicação para miserável situação de uns sem ser a ganância e o individualismo de outros.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

pilequinho



                  Levantou com a voz muito jocosa. De saída a empregada se deu por conta e foi fazendo comentários de que a língua estava colada no céu da boca. Foi falando de tal goma arábica que insetos deixavam em quem dormia de boca aberta. 
                  Que goma nada. Parecia mais estar de pilequinho. Não tinha ido há nenhuma festa, mas naquela manhã tinha a sensação de estar de ressaca. Ressaca dos que tinham ido e não tinham a levado. Ressaca do dia anterior que viu seus móveis saírem da casa que morou mais de 20 anos. No dia anterior mostrou o álbum de fotografia para a empregada, junto com mais de uma dúzia de histórias e recordações. Eles não entendiam a sua ressaca. As dores e reclamações que iam bem além de uma osteoporose e a birra da geladeira dentro do quarto novo, para que tivesse pequenos caprichos.
                  Mais à tardinha daquele dia, a ressaca foi tão grande que o telefone dele tocou avisando que ela tinha tido um acidente cardiovascular. O seu coração ficou de pilequinho de tanta dor. Por um momento, que Deus não a deixe mentir, pensou que tinha chegado a sua hora. Mas felizmente ficou apenas com uma pequena embriaguez com as palavras - alegres e tristes. 

pirilampos

Tinha tudo. Uma alma especial que lhe amava, uma posição de destaque, um emprego que não era seguro, mas que também não corria riscos.
            Aos sábados os amigos faziam questão em fazer visitas, tinha isso também. Como tinha uma casa com muito conforto, como era confortável também as inúmeras viagens e lugares que já conhecia do mundo.
            O que tinha era mais que tudo. A sua limpeza agradaria muito aos outros, as suas angustias em outras mesas poderia até ser matéria de felicidade. O travesseiro em lágrimas poderia ser sorriso em muitos lábios.
            Esse tudo começou por seu pés e posteriormente apoderou-se de suas mãos e depois de adoecer suas idéias e criar um círculo pentecostal em sua mão, cicatriz que conforme a época era muito visível, caminhou em direção ao coração.
            Com o coração tomado de uma feroz ambição adoeceu por completo. Após feitos muitos exames e ter em mãos os diagnósticos mais inteligentes e os mais estúpidos, topou por acaso numa senhora velha, olhar rabujento e roupas desaranjadas. Desculpo-se e a velha resmungou: doença de sangue gelado. Inicia nos membros inferiores e se ataca o arrependimento nada mais é possível fazer. Contar estrelas por semanas e até anos. Contá-las mesmo quando as noites prometem chuvas. É aconselhavel quando se deseja atravessar as grandes águas.
            Uma menina que não ultapassa 4 anos corre assanhada em volta da mesa enquanto aquelas gentes a olham reprovadamente. A mãe muito carinhosamente puxa para o seu lado e diz algumas palavras e a menina sorri matreiro e volta a correr. 

sábado, 24 de dezembro de 2011

O Coração é um órgão. Somos nós que nos encarregamos de colocar amor dentro dele.


Gertrudes e Bernadete esquecem que são inimigas e se abraçam, mas de verdade, por ser Natal. O senhor da esquina dá bom dia por ser Natal.  A menina lava os pratos do almoço para a mãe por ser Natal. Os namorados se amam ainda mais.
            O filho liga de longe dando noticias por ser Natal.  As casas e as almas ficam em sorriso. Em algum lugar que tenha guerra, param de matar por ser Natal. O mendigo fará uma boa refeição.  As águas caminharão sobre a terra e a terra caminhará sobre as águas. Por ser Natal os milagres            acontecem.
            Por ser Natal um coração duro pode amolecer, uma mente poluída pode se purificar e uma mão egoísta sensibilizar-se e alcançar um pão. Dá pra ver uma estrela no céu e fazer alguns pedidos, pois por ser natal toda estrela é cadente e o mundo de pedido, mais que esperança, tem fé.
            Por ser Natal a pessoa ora. O sujeito ajoelha.  O    substantivo se abençoa e o verbo pinta borboletas que  colorem um céu de vários pontos coloridos. Somados todos,  por ser Natal, em alguns instantes todos realizam seus sonhos de serem fadas, querubins e anjos, de outros tantos sonhos.
Por ser natal, mesmo o que não tem asas pode voar. Mesmo o que está seco pode voltar a florescer.  Até o que estava perdido tem oportunidade de ser recuperado. Um amor que se reencontra, um pai que perdoa um filho, um doente que recupera a saúde. Uma adoção que torna uma mulher, mãe. Uma toalha budista, com um vaso e uma flor sobre a mesa encantam os olhos por ser Natal.
            Por ser Natal os olhos deixam de lado as diversidades. Pretos, brancos, gays, budistas, batuqueiros, pastores, padres, machistas, feministas, comunistas, capitalistas se tratam como irmãos.
            Por ser Natal colocamos amor para dentro do coração e o coração do mundo tem um batimento cardíaco diferente do que estamos acostumados a experimentar.  Desta forma, não é segredo pra ninguém o tipo de remédio que  devemos tomar para que em 2012 não precisemos nos queixar das mesmas dores. Amar não é o que pode fazer dar certo.  Amar é o que faz dar certo.  Feliz Natal e um Ano Novo, Novo todos os Dias. 

domingo, 23 de outubro de 2011

[o ferreiro]


Sua vida toda tinha vivido ali em Terra Nova. Contam que após a volta de Maurício de Nassau compulsoriamente pela Companhia das Índias,  algumas famílias já acostumadas com o jeito agreste de Olinda resolveram não voltar para Holanda e fugiram uns 120 km para o interior e lá fizeram uma pequena vila.
            No centro da vila levantaram uma Igreja protestante, não que eles fossem freqüentá-la, mas era conveniente para não excederem no álcool, as meninas logo cedo não serem apanhadas na gravidez, para que os ladrões e os cafajestes guardassem um pouco de respeito pelo pecado. Do outro lado foi construído o palácio do governo e pela manhã se hasteava a bandeira da Holanda e ao lado dela a de Amsterdã. Nas escolas se ensinava o Neerlandês, mas nas casas de perdição, quando os pais brigavam com os filhos ou as mulheres enxotavam os maridos de suas camas, a língua era um dialeto de nome esquisito, o frísio.
            Cresceu em roda do moinho de vento que servia para a cultura do queijo, a confecção dos tamancos de madeira e a cerâmica Delf. Mas foi mesmo o exercício de ferreiro que aprendeu do pai e o pai do avô, que herdou como ofício. No início prestava serviços para engenho, mais adiante fez algumas peças para montaria, forjava armamentos e vez que outra era procurado para dobrar e cortar alguma ferradura que escapava de cavalo velho ou xucro. Mas o que lhe encantava mesmo era os objetos feitos com carinho e dedicação para alguma igreja, fosse a religião que fosse, que com a sua bigorna e o seu martelo ia dando contorno de sonhos. Sonhos que ia espalhando em forma de portões de ferro, lustres, luminárias, mobiliário, esculturas, ferramentas, objectos decorativos e até mesmo utensílios de cozinha como um bom panelão para o preparo de uma rica e prazerosa sopa de inverno.
            Malaquias nem mal tinha chegado e de longe viu o portão que tinha sido arrombado e as grades entortadas. Pegou algumas moedas de ouro pelo serviço e combinou de entregá-lo em dois dias. Era tarde da noite em sua oficina, o calor imenso, enquanto fazia o concerto ouviu uma voz. Olhou para um lado e olhou para outro e nada. Não quis acreditar mas era o portão que falava com ele e passou a contar todo o ocorrido. Falou-lhe que eram dois homens, um mais alto e outro pouca coisa mais baixo. Entraram e saíram com duas sacolas abarrotadas de moedas e muitas outras imagens em ouro de santos e santas. O Portão também lhe contou que os ladrões confidenciavam que passariam uma temporada em Cerro Largo onde esperariam um receptador das imagens e adiante seguiriam para o sul do estado.
            Na manhã seguinte Malaquias foi ter uma conferencia com o Bispo do ocorrido na noite passada. O Bispo achou que era coisa de louco, mas mesmo assim mandou uma patrulha averiguar.  As meninas calçavam girassóis e jasmins naquelas manhãs onde seus corpos sonhavam com seus amores.  Os homens debruçavam seus fortes braços nas colheitas trazendo alimentação e se sentiam felizes em fazerem sexo com suas mulheres . Todos eles pararam para ver a patrulha que vinha de longe invadir a pequena taberna e pegar dois homens exatamente como Malaquias tinha profetizado.
            Malaquias passou a ver seu nome conhecido muito além do Vilarejo. Não era mais chamado para o exercício de Ferreiro, mas para investigar um roubo aqui, um assassinato sem nenhum vestígio e até mesmo andou conversando com obras de arte para saber delas se realmente eram originais ou não passavam de meras imitações. Uma vida muita agitada com nobres, artesões, arcebispos e mesmo homens de guerra, que aprisionavam as armas dos seus adversários e chamavam Malaquias para uma conferencia com elas. Umas nada entregavam sobre seus possuidores, outras lamentavam e não apenas falavam sobre as estratégias do inimigo, como relatavam o medo e faziam as mais intimas confissões da vida particular dos que as tinham manejado.
            Mas foi quase na aurora que um mensageiro veio buscá-lo em segredo. Ele mal deixou que Malaquias se vestisse e durante 4 horas seguiram em viagem sabe lá para onde, pois o homem lhe vendou. Era um castelo enorme, de muita riqueza e na ponta de uma mesa que em comprimento poderia medir sua sala e quarto avistou uma mulher por mais de bela.
            Ela resolutivamente foi direto ao assunto. Se você pode ler o pensamento dos objetos, das plantas, dos animais, do que é vivo e do que aparentemente não tem vida, presume-se que também saiba dos seus sonhos. Com a cabeça acenou positivamente. Trouxe de um baú muito antigo uma taça e pediu para que contasse seus sonhos para ele. A taça revelou que desejava matar a sede de seus patrícios, mas tinha tido uma vida em grandes bacanais, orgias e as bocas que por ela passaram se embriagaram de uma dor tão imensa que nada tinha restado de dignidade, nem dela e nem os que dela fizeram seu uso.
            Perfeito disse a mulher. Disse a ele que daria uma janta para inúmeros convidados e uma dama em especial desejava que lê-se seus sonhos. Disse que aquilo não sabia se era possível, mas a sacola de moedas comprou suas impossibilidades. Na mesma mesa ele disse a ela que a Dama a mataria, tiraria seu castelo e usaria seu esposo para toda a tragédia. Estes eram seus planos. Nem bastou que encerra-se a dama mandou que se armasse uma emboscada e dessem cabo na mulher como se tudo fosse um acaso terrível.
            A luz do grande quarto coberto de conforto e as mais admiráveis obras de arte começou a piscar. Olhou-a e ela, sem mesmo que a interrogasse, passou a escrever a sua história. Um ofício de contador de fofocas. Lá na sua arte um vendedor de sonhos. Cá no seu sepulcro um avassalador de vidas. O trigo não escolhe quem alimenta. Ele também deixa forte os que devoram os fracos. Apagou a luz, quebrou a lampada e espatifou o lustre de madre pérolas.
            A enfermeira carinhosamente veio trazer a última refeição do dia. Com uma voz celestial mais uma vez insistiu que se não comece ia ficar muito fraco, doente. As paredes do hospício davam risadas e cochichavam que esse era o ferreiro que ao invés de sonhos saiu pelo mundo a vender pequenas porções de inferno. Está agora tomado por seus próprios demônios.