terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Vento.


Ia ser o próprio vento. Desejava assoviar nos telhados de zinco, levantar as saias das meninas, empurrar a bola para dentro do gol, varrer a areia branca.


Um dia seria o vento, pois ele que era sábio. Sem tempo futuro, sempre em tempo presente. Cansou-se de ter hora para isso e hora para aquilo. Quando então encarna-se como vento ia almoçar a hora que bem entendesse. Poderia balançar as plantações de trigais e surpreender os camponeses. Trazer os boêmios mais cedo para casa e permitir que os operários tivessem justificativas para chegar mais tarde em suas fábricas e assim, ficariam um pouco mais em suas camas ao lado do afeto de suas mulheres.

Ia soprar nos ouvidos de quem faz a guerra para que praticassem a paz. Sobre aqueles que muito tem para comer e os que pouco se alimentam, lançaria um grande vendaval e o que entra na boca do homem se espalharia para que entrasse na boca de todos os homens.

Desejava ser um vento de felicidade. Esse que despenteia os cabelos, seca lágrimas, balança as roupas no varal, avisa que a seca terminará, fecha janelas e abre novas portas. Um vento malicioso que se enrosca nas pernas, dá arrepio na coluna e faz bilhetinhos de amor caírem à alguns passos do ser amado.

Como queria ser o vento. Porque o vento faz com que algumas pessoas vão para que outras entrem. Faz com que pessoas vêm para que outras saiam. Nesse movimento poderia se abraçar com as árvores, cantar junto com os pássaros, beijar o sol, enlaçar a lua e fazer com que a Dona Ernestina, volte a tomar cuidado de si. Nesses anos todos ela só tem dado ouvido para os outros, pouco tempo tem dado para escutar o que o seu coração quer.

O Vento não precisa de nada. Era assim que pretendia ser. Para que casas enormes? contar dinheiro e mais dinheiro? Para que tanto suor, Para que tanto luxo? Para que tanta coisa que não se usava? Para que tantos sapatos, roupas, bibelôs? Tinha certeza que isso lhe fazia prisioneiro, do pouco que tinha e do muito que esperava. Como vento estaria livre. O grande mistério estava no desapego do vento. Ninguém o guardava e ele não guardava ninguém.

Lá por Araraquara, cidadezinha do agreste, homens e mulheres, mesmo com a seca, a vida dura, demoram muito a envelhecer. Em um período, as coisas que eram feitas de um jeito, passam a ser feitas de outro. Lá também, por muitas horas sentam na varanda para ouvir a ventania ou o Ventania. Um caboclo que saiu de casa e nunca mais deu sinal de vida, mas nem de morte.

Passageiro.


Podemos pensar que eterno seja o mesmo que pra sempre. Podemos nos iludir que algumas coisas são eternas e desejamos quase com a nossa morte que durem infinitamente. Há várias coisas que se eternizam dentro de nós e nem mesmo nos damos conta. Lá um dia, elas aparecem como um raio de luz, e não foram para sempre. E há várias outras que acabam sendo pra sempre e nunca se tornaram eternas dentro de nós.


Tem o primeiro beijo que nem sempre é eterno, mas tem um beijo que é registro. Tem os passos que damos em rumo há um novo emprego que pode ser pra sempre, mas eterno mesmo é quando vemos nossos filhos andando pela primeira vez. Tem a primeira professora que é eterna. Tem o amor que é eterno. E tem os vários outros amores que vamos sentindo que deixam apenas a digital ou que guardam seu autógrafo no nosso coração. Depois tem tantas outras coisas eternas lá dentro que, só saem pra fora, quando nos damos chance de mergulhar no que há de melhor em nós: a primeira medalha, o chá trazido pela mãe quando a febre apertava o ponteiro do termômetro, o filme do Durango Kid, as bananeiras do quintal, os soldadinhos, as bonecas, ir ao trabalho do pai quando estávamos de férias. A volta de quem amamos, a ida ao encontro de quem amamos. A rodoviária, o aeroporto, o carro.

Somos angustiados para dominar o tempo. O tempo de ter que trabalhar, o tempo de ter que se divertir, o tempo de ter que ir comprar, o tempo de ter que tirar dinheiro, o tempo de ter que estudar, o tempo de ter que dormir, o tempo de ter que estar acordado... O tempo da vida. Esquecemos que o melhor tempo é o tempo de agora. Diferente do tempo de ontem, do tempo de hoje e do tempo de amanhã.

O amor que não tenta dominar é sempre passageiro, porque sabe que o amor tem lá suas manias de nunca ser igual ao que foi um dia.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Amor.

Ensaiou várias vezes diante do espelho. Treinou e treinou e não parou mais de treinar aquela declaração. Seria naquele dia. Não retornaria mais para casa com aquela angústia.




-Maitê...Quando me aproximo de ti meu coração fica apertado, não consigo falar nada, as palavras ficam embrulhadas e tenho vontade de sair correndo. Quero que saiba que gosto muito de ti e que você é a pessoa mais especial desse mundo.



Ela nada falou. Abraçou-lhe tão profundamente como quem acolhesse para sempre aquela declaração. Depois foram brincar pelo pátio, pois a professora estava chamando para que as crianças da 1ª série voltassem do recreio.

Ortelã.


Via aquela menina de blusinha branca sentada no muro. Corpo em plena puberdade, formas perfeitas, cabelos negros que contrastavam com o amarelo dos lírios que cresciam naquela primavera. Tinha perfume de ortelã molhada pela chuva.


Todos diziam que aquela mulher era muito velha para ele. Roupas esquisitas, palavras sempre severas. Um pouco mais de capricho com os cabelos até poderiam lhe dar uma aparência um pouco melhor.

Olhos são olhos. Não se compram.

Patente.


De quem é a patente da guerra?


De quem é a patente da miséria?

De quem é a patente da violência?

De quem é a patente da droga, do abuso sexual, da exploração, da devastação, da extinção?

De quem é a patente “fazer chorar enquanto se sorri”, “fazer sofrer enquanto se diverti”, “enriquecer através do empobrecimento de outros”, “tirar e nada dar”. De quem é a patente bater, matar, armar-se para se proteger? De quem é a patente do medo?

Van Gogh pinta um quadro enquanto Gogan diz que partirá. Van Gogh corta a orelha e Gogan retorna, mas não retornará para sempre. Van Gogh ficará louco. Gogan ficará louco.

Do jeito que caminha a humanidade não restará nenhuma coisa para fazer patente. Nem merda.

Recado.





Ela estende a mão para pegar uma caneta. Ele está sentado na platéia.

Ela pegou dois ônibus para chegar e cantar ali enquanto as pessoas comem seus hamburgers. Ele deixou seu carro fora da garagem porque não quer pagar estacionamento.

Ele pensa que ela olha para ele. Ela olha no vazio e pensa na sua vida.

Ela percebe que novamente há dois acordes errados na música e altera a cifragem. O garçom passa reto. Ele a perdoa. Levanta e se vai. Na próxima sexta quem sabe ela lhe enxergue e lhe escreva um recado.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Maria.


Tinha 18 para 19 anos quando chegou na capital. Muito longe. Veio de muito longe com a barriga grande, um amor que lhe abandonou e um avô italiano que lhe expulsou de casa. Não sabia nenhuma lida além da de mexer na terra, cozinhar para os irmãos e cerzir buracos de meias, cuecas e camisas que iam se despedaçando com o tempo. Também não sabia ler.


A barriga ia crescendo. Todo dia a barriga ia crescendo. Ninguém quer empregar uma mulher de barriga grande. Aos 21 de abril, deu a luz para uma menina mulata, que denominou de Luz.

Sem barriga pode empregar-se como costureira.

Maria admira o DVD. É complicado, teimoso, com um controle remoto repleto de botões. Olha o homem da TV que não olha para ela, mas ela olha para ele. Maria se orgulha da sua cabeça. Toma guaraná cerebral e escreve com um só olho, pois o outro se foi: fruto de uma trombose. Diariamente faz isso, copia pequenos trechos de livros, passa a limpo receitas, escreve pequenos poemas. Ela tem fé que assim a tal doença que chamam de mal de Parkinson nunca vai lhe deixar uma velha gagá.

Maria não tem mais o parceiro, o Luiz já se foi há uns 20 anos. A única filha também já partiu. O mesmo ocorreu com seus três outros irmãos. Nos domingos, com seus 83 anos, pega o taxi e vai visitar a irmã mais nova. Vestido escolhido a dedo, passa batom e pergunta para o neto se está bonita. Ele sempre diz que está e ela sempre acredita. Eles não se mentem. Eles se amam.

Maria faz planos. Tem planos em trocar os azulejos da cozinha e do banheiro, tem planos em comprar uma geladeira nova, tem planos em recomeçar a hidroginástica, tem planos em voltar a estudar. Não está em seus planos chorar pelos cantos, em lamentar pelos cantos, em amaldiçoar pelos cantos. Ainda tem que fazer muito arroz doce e torta de bolacha de leite condensado com pitadas de limão.

Todas as manhãs reza no seu quarto de oração. Diz à eles que lhe de saúde e um pouco mais de conforto. Pede por todos e para todos, só não pede mais para viver um grande amor, já viveu o seu. Maria pede também para viver ainda muito, pois muito tem que fazer. Eles acreditam. Agora eles é que tem fé nela, porque ela colocou sua fé a disposição deles por toda sua vida.

Ilusão de Ótica.


Devia usar óculos, mas insiste em usar lentes de contato. Devia se alimentar melhor, mas insiste em se alimentar pior. Insiste também em acreditar que ela olha para ele.


Ela canta e olha para o vazio. Ele insiste em acreditar que o vazio é ele. Ele insiste em acreditar que mulheres impossíveis irão se apaixonar por ele. Ele insiste em acreditar que esbarrará no seu amor. Ele insiste em dizer que está enxergando, quando nada vê.

Mas, seja lá como for, quando olhamos pela janela do carro, a paisagem nos parece tão bela. E tudo também não passa de uma ilusão de ótica.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Livraria.


Por muito tempo as livrarias foram lugares habitados por gente de outro mundo. Que coisa séria. Obter conhecimento nesse tempo era sinônimo de lentes garrafais, pouco batom, cabelos lambidos e um ar de extraterreno.


Os livros agora percorrem as mãos da gente desse mundo. Gente que procura respostas. Respostas de amor, respostas científicas, procuram o trem e a bagagem, o cálice e o vinho, as asas e o vôo. Nunca encontram e por isso continuam procurando.

Camila está lá com a sua mãe. Ela lê alto e camila ri. As duas dividem a mesma poltrona, o mesmo sonho, a mesma mágica. Alguém passa e as chama - para cá. Para dentro do mundo real. Elas atendem, mas logo em seguida voltam e começam a rir novamente.

Camila é bela, muito bela. Não usa óculos, não tem cara de uma pessoa fora desse mundo e demonstra um ar de quem gosta de algumas boas horas em frente ao espelho. É nova, uma pequena menina, mas que já tem escrito no seu rosto que ela é verão, esteja no inverno ou no outono. Sobe e desce as escadas da livraria correndo, intimamente conhecedora de cada degrau. Percorre os corredores com muita destreza. É leve porque só à tristeza é que pesa. E tristeza é um mal que Camila não sofre.

Está boquiaberta com a possibilidade do bruxo, mesmo sendo um bruxo, também possa ser um príncipe. Detraidamente deixa que um pingo do seu pirulito caia sobre parte da história. A mãe olha para ela com uma cara de quem está a repreendendo. Camila não está preocupada. Olha para mãe e responde:

- Agora a história ainda está mais doce, mamãe.

mOSquiTO.

Gostava de olhar por dentro das saias. Desde pequeno já tinha o mal hábito de dar beliscões nas bundas da mãe e das irmãs. Quando o espelho retratava um rosto repleto de espinhas, foi o tempo em que criava mil estratégias para poder entrar silenciosamente no quarto da irmã. Divertia-se vendo as amigas dela.


Amadureceu e os péssimos hábitos lhe acompanharam. Deixava picadas em suas namoradas propositadamente, voava de bar em bar atrás de qualquer coisa mais doce que um copo de cerveja, pousava sua mão mesmo sobre o ombro de desconhecidas. No futebol, que futebol, ficava zunindo o primeiro ouvido que lhe desse trela.


Certa noite a morte lhe visitou. Ela sentou sossegadamente ao seu lado e disse que tinha chegado a sua hora. Ele perguntou a ela se tinha certeza. Ela olhou novamente em seu fichário. Confirmava lá o nome: Onório Dutra. Onório Dutra é você. Devemos ir, pois o diabo não tarda a raiar. Em uma contra proposta perguntou para a Morte? A Morte nunca foi lá muito regrada, exata, pontual. Para alguns chegava cedo demais, para outros perdia as contas.

Sou toda ouvidos, respondeu a dama vestida num belo e prateado vestido de noite. E se me transforma-se em outra coisa, confidenciou Onófrio.

Na manhã do dia 7 de julho, as 10 horas da manhã, uma centena de viúvas se batiam para deixar a última lágrima e um cravo branco para Onófrio Dutra. Todos que estiveram no enterro não puderam deixar de reparar um mosquito infernal que acompanhava o cortejo. O mais admirável é que o tal inceto era enxotado dentro de seios, embaixo de saias, em volta de pescoços femininos. O mosquito só sossegou quando encontrou uns belos lábios carnudos que pousou e por ali ficou.