Sua vida toda tinha vivido
ali em Terra Nova. Contam que após a volta de Maurício de Nassau
compulsoriamente pela Companhia das Índias,
algumas famílias já acostumadas com o jeito agreste de Olinda resolveram
não voltar para Holanda e fugiram uns 120 km para o interior e lá fizeram uma
pequena vila.
No centro da vila levantaram uma Igreja protestante, não
que eles fossem freqüentá-la, mas era conveniente para não excederem no álcool,
as meninas logo cedo não serem apanhadas na gravidez, para que os ladrões e os
cafajestes guardassem um pouco de respeito pelo pecado. Do outro lado foi
construído o palácio do governo e pela manhã se hasteava a bandeira da Holanda
e ao lado dela a de Amsterdã. Nas escolas se ensinava o Neerlandês, mas nas
casas de perdição, quando os pais brigavam com os filhos ou as mulheres
enxotavam os maridos de suas camas, a língua era um dialeto de nome esquisito,
o frísio.
Cresceu em roda do moinho de vento que servia para a
cultura do queijo, a confecção dos tamancos de madeira e a cerâmica Delf. Mas
foi mesmo o exercício de ferreiro que aprendeu do pai e o pai do avô, que
herdou como ofício. No início prestava serviços para engenho, mais adiante fez
algumas peças para montaria, forjava armamentos e vez que outra era procurado
para dobrar e cortar alguma ferradura que escapava de cavalo velho ou xucro.
Mas o que lhe encantava mesmo era os objetos feitos com carinho e dedicação
para alguma igreja, fosse a religião que fosse, que com a sua bigorna e o seu
martelo ia dando contorno de sonhos. Sonhos que ia espalhando em forma de
portões de ferro, lustres, luminárias, mobiliário, esculturas, ferramentas,
objectos decorativos e até mesmo utensílios de cozinha como um bom panelão para
o preparo de uma rica e prazerosa sopa de inverno.
Malaquias nem mal tinha chegado e de longe viu o portão
que tinha sido arrombado e as grades entortadas. Pegou algumas moedas de ouro
pelo serviço e combinou de entregá-lo em dois dias. Era tarde da noite em sua
oficina, o calor imenso, enquanto fazia o concerto ouviu uma voz. Olhou para um
lado e olhou para outro e nada. Não quis acreditar mas era o portão que falava
com ele e passou a contar todo o ocorrido. Falou-lhe que eram dois homens, um
mais alto e outro pouca coisa mais baixo. Entraram e saíram com duas sacolas
abarrotadas de moedas e muitas outras imagens em ouro de santos e santas. O
Portão também lhe contou que os ladrões confidenciavam que passariam uma
temporada em Cerro Largo onde esperariam um receptador das imagens e adiante
seguiriam para o sul do estado.
Na manhã seguinte Malaquias foi ter uma conferencia com o
Bispo do ocorrido na noite passada. O Bispo achou que era coisa de louco, mas
mesmo assim mandou uma patrulha averiguar.
As meninas calçavam girassóis e jasmins naquelas manhãs onde seus corpos
sonhavam com seus amores. Os homens
debruçavam seus fortes braços nas colheitas trazendo alimentação e se sentiam
felizes em fazerem sexo com suas mulheres . Todos eles pararam para ver a
patrulha que vinha de longe invadir a pequena taberna e pegar dois homens
exatamente como Malaquias tinha profetizado.
Malaquias passou a ver seu nome conhecido muito além do
Vilarejo. Não era mais chamado para o exercício de Ferreiro, mas para
investigar um roubo aqui, um assassinato sem nenhum vestígio e até mesmo andou
conversando com obras de arte para saber delas se realmente eram originais ou
não passavam de meras imitações. Uma vida muita agitada com nobres, artesões,
arcebispos e mesmo homens de guerra, que aprisionavam as armas dos seus adversários
e chamavam Malaquias para uma conferencia com elas. Umas nada entregavam sobre
seus possuidores, outras lamentavam e não apenas falavam sobre as estratégias
do inimigo, como relatavam o medo e faziam as mais intimas confissões da vida
particular dos que as tinham manejado.
Mas foi quase na aurora que um mensageiro veio buscá-lo
em segredo. Ele mal deixou que Malaquias se vestisse e durante 4 horas seguiram
em viagem sabe lá para onde, pois o homem lhe vendou. Era um castelo enorme, de
muita riqueza e na ponta de uma mesa que em comprimento poderia medir sua sala
e quarto avistou uma mulher por mais de bela.
Ela resolutivamente foi direto ao assunto. Se você pode
ler o pensamento dos objetos, das plantas, dos animais, do que é vivo e do que
aparentemente não tem vida, presume-se que também saiba dos seus sonhos. Com a
cabeça acenou positivamente. Trouxe de um baú muito antigo uma taça e pediu
para que contasse seus sonhos para ele. A taça revelou que desejava matar a
sede de seus patrícios, mas tinha tido uma vida em grandes bacanais, orgias e
as bocas que por ela passaram se embriagaram de uma dor tão imensa que nada
tinha restado de dignidade, nem dela e nem os que dela fizeram seu uso.
Perfeito disse a mulher. Disse a ele que daria uma janta
para inúmeros convidados e uma dama em especial desejava que lê-se seus sonhos.
Disse que aquilo não sabia se era possível, mas a sacola de moedas comprou suas
impossibilidades. Na mesma mesa ele disse a ela que a Dama a mataria, tiraria
seu castelo e usaria seu esposo para toda a tragédia. Estes eram seus planos.
Nem bastou que encerra-se a dama mandou que se armasse uma emboscada e dessem
cabo na mulher como se tudo fosse um acaso terrível.
A luz do grande quarto coberto de conforto e as mais
admiráveis obras de arte começou a piscar. Olhou-a e ela, sem mesmo que a
interrogasse, passou a escrever a sua história. Um ofício de contador de
fofocas. Lá na sua arte um vendedor de sonhos. Cá no seu sepulcro um
avassalador de vidas. O trigo não escolhe quem alimenta. Ele também deixa forte
os que devoram os fracos. Apagou a luz, quebrou a lampada e espatifou o lustre
de madre pérolas.
A enfermeira carinhosamente veio trazer a última refeição
do dia. Com uma voz celestial mais uma vez insistiu que se não comece ia ficar
muito fraco, doente. As paredes do hospício davam risadas e cochichavam que
esse era o ferreiro que ao invés de sonhos saiu pelo mundo a vender pequenas
porções de inferno. Está agora tomado por seus próprios demônios.
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