domingo, 23 de outubro de 2011

[o ferreiro]


Sua vida toda tinha vivido ali em Terra Nova. Contam que após a volta de Maurício de Nassau compulsoriamente pela Companhia das Índias,  algumas famílias já acostumadas com o jeito agreste de Olinda resolveram não voltar para Holanda e fugiram uns 120 km para o interior e lá fizeram uma pequena vila.
            No centro da vila levantaram uma Igreja protestante, não que eles fossem freqüentá-la, mas era conveniente para não excederem no álcool, as meninas logo cedo não serem apanhadas na gravidez, para que os ladrões e os cafajestes guardassem um pouco de respeito pelo pecado. Do outro lado foi construído o palácio do governo e pela manhã se hasteava a bandeira da Holanda e ao lado dela a de Amsterdã. Nas escolas se ensinava o Neerlandês, mas nas casas de perdição, quando os pais brigavam com os filhos ou as mulheres enxotavam os maridos de suas camas, a língua era um dialeto de nome esquisito, o frísio.
            Cresceu em roda do moinho de vento que servia para a cultura do queijo, a confecção dos tamancos de madeira e a cerâmica Delf. Mas foi mesmo o exercício de ferreiro que aprendeu do pai e o pai do avô, que herdou como ofício. No início prestava serviços para engenho, mais adiante fez algumas peças para montaria, forjava armamentos e vez que outra era procurado para dobrar e cortar alguma ferradura que escapava de cavalo velho ou xucro. Mas o que lhe encantava mesmo era os objetos feitos com carinho e dedicação para alguma igreja, fosse a religião que fosse, que com a sua bigorna e o seu martelo ia dando contorno de sonhos. Sonhos que ia espalhando em forma de portões de ferro, lustres, luminárias, mobiliário, esculturas, ferramentas, objectos decorativos e até mesmo utensílios de cozinha como um bom panelão para o preparo de uma rica e prazerosa sopa de inverno.
            Malaquias nem mal tinha chegado e de longe viu o portão que tinha sido arrombado e as grades entortadas. Pegou algumas moedas de ouro pelo serviço e combinou de entregá-lo em dois dias. Era tarde da noite em sua oficina, o calor imenso, enquanto fazia o concerto ouviu uma voz. Olhou para um lado e olhou para outro e nada. Não quis acreditar mas era o portão que falava com ele e passou a contar todo o ocorrido. Falou-lhe que eram dois homens, um mais alto e outro pouca coisa mais baixo. Entraram e saíram com duas sacolas abarrotadas de moedas e muitas outras imagens em ouro de santos e santas. O Portão também lhe contou que os ladrões confidenciavam que passariam uma temporada em Cerro Largo onde esperariam um receptador das imagens e adiante seguiriam para o sul do estado.
            Na manhã seguinte Malaquias foi ter uma conferencia com o Bispo do ocorrido na noite passada. O Bispo achou que era coisa de louco, mas mesmo assim mandou uma patrulha averiguar.  As meninas calçavam girassóis e jasmins naquelas manhãs onde seus corpos sonhavam com seus amores.  Os homens debruçavam seus fortes braços nas colheitas trazendo alimentação e se sentiam felizes em fazerem sexo com suas mulheres . Todos eles pararam para ver a patrulha que vinha de longe invadir a pequena taberna e pegar dois homens exatamente como Malaquias tinha profetizado.
            Malaquias passou a ver seu nome conhecido muito além do Vilarejo. Não era mais chamado para o exercício de Ferreiro, mas para investigar um roubo aqui, um assassinato sem nenhum vestígio e até mesmo andou conversando com obras de arte para saber delas se realmente eram originais ou não passavam de meras imitações. Uma vida muita agitada com nobres, artesões, arcebispos e mesmo homens de guerra, que aprisionavam as armas dos seus adversários e chamavam Malaquias para uma conferencia com elas. Umas nada entregavam sobre seus possuidores, outras lamentavam e não apenas falavam sobre as estratégias do inimigo, como relatavam o medo e faziam as mais intimas confissões da vida particular dos que as tinham manejado.
            Mas foi quase na aurora que um mensageiro veio buscá-lo em segredo. Ele mal deixou que Malaquias se vestisse e durante 4 horas seguiram em viagem sabe lá para onde, pois o homem lhe vendou. Era um castelo enorme, de muita riqueza e na ponta de uma mesa que em comprimento poderia medir sua sala e quarto avistou uma mulher por mais de bela.
            Ela resolutivamente foi direto ao assunto. Se você pode ler o pensamento dos objetos, das plantas, dos animais, do que é vivo e do que aparentemente não tem vida, presume-se que também saiba dos seus sonhos. Com a cabeça acenou positivamente. Trouxe de um baú muito antigo uma taça e pediu para que contasse seus sonhos para ele. A taça revelou que desejava matar a sede de seus patrícios, mas tinha tido uma vida em grandes bacanais, orgias e as bocas que por ela passaram se embriagaram de uma dor tão imensa que nada tinha restado de dignidade, nem dela e nem os que dela fizeram seu uso.
            Perfeito disse a mulher. Disse a ele que daria uma janta para inúmeros convidados e uma dama em especial desejava que lê-se seus sonhos. Disse que aquilo não sabia se era possível, mas a sacola de moedas comprou suas impossibilidades. Na mesma mesa ele disse a ela que a Dama a mataria, tiraria seu castelo e usaria seu esposo para toda a tragédia. Estes eram seus planos. Nem bastou que encerra-se a dama mandou que se armasse uma emboscada e dessem cabo na mulher como se tudo fosse um acaso terrível.
            A luz do grande quarto coberto de conforto e as mais admiráveis obras de arte começou a piscar. Olhou-a e ela, sem mesmo que a interrogasse, passou a escrever a sua história. Um ofício de contador de fofocas. Lá na sua arte um vendedor de sonhos. Cá no seu sepulcro um avassalador de vidas. O trigo não escolhe quem alimenta. Ele também deixa forte os que devoram os fracos. Apagou a luz, quebrou a lampada e espatifou o lustre de madre pérolas.
            A enfermeira carinhosamente veio trazer a última refeição do dia. Com uma voz celestial mais uma vez insistiu que se não comece ia ficar muito fraco, doente. As paredes do hospício davam risadas e cochichavam que esse era o ferreiro que ao invés de sonhos saiu pelo mundo a vender pequenas porções de inferno. Está agora tomado por seus próprios demônios.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário