quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Magrela.



Chamava carinhosamente a sua bicicleta de magrela. Era homem bom, honesto e virtuoso.
Amava sua esposa. Ela ia para Igreja, ele durante a semana era zelador. Tinham uma menininha de 6 anos. Ela aprendia a ler. Eles se orgulhavam.


O amor é simples. Como o amor tem se demonstrado simples. Como o amor tem se demonstrado que é só amor. Dane-se os terapeutas de casais, melhor, dane-se todos aqueles que querem curar o amor.


Orgulhava-se do seu ofício. Colocava o uniforme como se fosse um fardamento. A camisa bem engomada, o sapato bem lustrado e as calças azuis impecavelmente passadas. Abria a porta do elevador como se as pessoas fossem majestades. Mas, nem por isso se tornava plebeu. Tinha um perfume e algumas vezes borrifava no hall de entrada.


Como é bom trabalhar no que se gosta. Nos incomodamos menos, envelhecemos menos e não ficamos angustiados para que a sexta-feira chegue para nos tirar da prisão. Há muitos escravos na nossa sociedade. Eles capinam as praças, varrem as ruas, nos servem cafezinho, torneiam peças o dia inteiro, fecham caixas nas linhas produção. Mas, há escravos piores. Os que não tem coragem de levantar a poeira. Sonham para suas vidas algo que nada tem haver com o que fazem. Estão acorrentados pelo dinheiro. Um mundo sendo jogado fora, uma voz sendo apertada dentro do peito, um retrato que vai amarelando de nós mesmos.


Lá ia ele com sua magrela. No sábado pela manhã saía em direção da sua casa que dava mais ou menos 1 hora e meia da cidade. Via a cidade, lia a cidade com os olhos, sentia a cidade correndo no seu peito, voava pela cidade que deslizava nos pneus da sua magrela.


Tínhamos que reclamar menos do que temos demais. Deveríamos ir ao circo. Perfumaríamos mais as nossas idéias se tivéssemos disposição para colher as pitangas. Estamos infeccionados por ar-condicionado, estacionamento, vitrines, celulares, velocímetros. A banda larga está transformando a vida numa banda curta. Não falta muito para perguntarmos com quantos megas se faz uma canoa.


A menina sorriu quando sentou-se no banco da magrela e seus cabelos balançaram ao vento. Outro dia alguém teve que explicar que as alfaces são colhidas da terra. Não tiro de todo a razão da velha gorda, o mundo está muito barulhento e as buzinas não fazem o trânsito andar.

Um comentário:

  1. Que delicadeza sua escrita,San...sempre me encanta!
    Você canta o amor de uma forma ímpar, de quando ele era simples, como deveria sê-lo sempre...
    a modernidade adoeceu o amor...as pitangas ainda resistem, mas o homem não tem tempo de apreciá-las ou colhê-las numa tarde de domingo qualquer...Domingo?...todos os dias são iguais nos ambientes condicionados...nos cyberespaços...

    Uma crítica profunda e verdadeira...de uma poesia única que me faz levitar...

    Só você,San,só você...

    besitos bluecarinhosos
    Blue

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