Ilária estava com manchas. Não daquelas que os
pneumologistas diagnosticam nos pulmões dos fumantes. Ilária estava com manchas
no coração. Profundos vazios que ao longo do tempo foram se desenvolvendo por
ir trocando isso por aquilo.
O médico era um sujeito pequeninho de sobrenome Tristão.
Cabelos quase longos e aparência taciturna. Poucas palavras. Agitado mas
lúgubre. Inteligente mas escorregadio com as palavras. Enfático, mas num tom
sonolento. Foi recomendado por aquele que era amigo daquela que conhecia a
então concunhada de Ilária. Como já tinha passado em vários outros médicos foi
cair naquela mistura de cientista com traços de alquimista.
A primeira vez que Ilária o viu, disse a si mesmo que aquilo
tudo era bobagem. Quando o médico Tristão deu o diagnóstico só não deu boas
risadas em sua cara, pois ele já tinha uma certa idade e respeito é uma coisa
que não dá pra comprar na prateleira do supermercado. Vá para casa e volte
amanhã, foram as palavras do sujeito dentro do seu avental branco, camisa lisa
e gravata listrada. Quis indagar sobre os remédios e ele nada falou. A
acompanhou até a porta e disse até logo.
Na manhã seguinte num vasto quadro negro tinha uma receita
escrita a própria punho. Ele disse a ela simplesmente – escreva. Não tenha
preguiça, tenha vontade. O preguiçoso anda na linha de seu próprio desafeto do
não fazer.
Sobre as manchas da esquerda são os vazios que vieram com a
má utilização do tempo. Trabalhe menos e preencha-os com passeios pelo parque,
tome sorvete vagarosamente, quando o despertador tocar não pule
instantaneamente da cama, sorria pelo menos 5 vezes ao dia por aquilo que lhe
faria chorar e chore por aquilo que deveria sorrir.
As manchas da direita indicam vazios da má utilização dos
recursos financeiros. A casa luxuosa e impecável, troque por aqueles
acampamentos que não fez na adolescência. O chefe estúpido e intolerante troque
por aquela forma de vida que foi matéria de risos entre os amigos. As jóias, os
presentes, o automóvel, os aparatos eletrônicos, os copos de cristal, as
passagens aéreas para aquela viagem cartão postal, o curso de idioma para
impressionar, as noites mal dormidas para pagar tudo isso dê um sentido. Sinta
Ilária que a casa só é bonita quando é vivida, que um automóvel são apenas
pernas circulares , que jóia é o beijo, que o chat é um choque no tocar, que a
solidão continua solidão mesmo no mar azul da Tailândia. A melhor língua é a
que aproxima e o melhor sono é o que sonha.
As manchas no centro do coração são referentes aos vazios do
amor. Estão ali contando das traições sofridas, das depressões, pelo que foi e
não voltou na mesma intensidade. Existe uma grande gaveta bem ao lado do
coração – foi inteligentemente criada para que exatamente fossem guardadas e
tivéssemos a possibilidade de recomeçar. Pare de alimentá-las, porque sem
alimentação perdem sua força. Alimente-se da experiência do encontro. Diga que
quer, cante que pode entrar, respire que é dessa vez, transpire amor. Dizem que
anjos são sujeitos muito atarefados e atrapalhados. A fila para encontros está
cada vez maior. Deixe o corpo perfumado e a alma embebida em vinho sauvignon.
Sobre tudo aquilo que estava escrito Ilária chegou em casa e
chorou desatinadamente. Quando pegou aquela velha carta que seu noivo contava
que estava desmanchando o relacionamento porque tinha se apaixonado por outra
mulher. Sorriu.