terça-feira, 15 de junho de 2010

[rezar]

Fazia um período grande que não batia água no lugarejo. Nas primeiras semanas caiaram os muros e depois as árvores para passar o tempo. Aproveitaram também para pintar os meios fios e a única faixa de segurança, que ficava diante da única escola. Naquilo tudo ia água, mas a expectativa era que em breve tudo iria se normalizar.

Foram vários mutirões de pequenos reparos. Todos se conheciam. Todos sabiam que Geremias era dono da Padaria, que Alfredo era o dono da farmácia, que o padre respondia pelo nome de Nilo e que para algumas benzeduras, cobreiros, conciliações de amor tinha que ser falado com a velha Anastácia. Nada da água se apresentar. Iniciaram uma operação de guerra restringindo primeiramente os banhos. Em seguida marcaram hora para lavarem as roupas e mais adiante quando a tensão já estava se misturando com o medo e a falta de equilíbrio também foi necessário um controle maior na água que se bebia.

Os animais andavam desolados nos campos que secavam. As crianças desidratadas faziam fila no pequeno posto de saúde coordenado pelo Dr. Romualdo. Calamidade Pública era como avaliava aquela situação o prefeito. O prefeito, homem de estatura mediana que andava na casa dos 60 anos mandou chamar o delegado e o vereador na pequena, mas imponente Prefeitura para darem uma solução para o problema. Concluíram que deveriam escrever uma carta ao condado mais próximo. Alguns carros pipas poderiam resolver momentaneamente a situação. Mas quando chegariam? Foi à pergunta do Delegado.

Na manhã de sábado Carmen sentiu as primeiras contrações e não tardou em arrumar sua pequena mala, sorriu para a mãe, sorriu para a velha tia, deu a mão para Alonso e ainda teve que apressá-lo para irem ao posto. Não mais que 200 metros, umas 8 casas. Era seu primeiro filho e isso lhe dava um friozinho na barriga, diga-se de passagem, uma barriga que estava enorme, inclusive alguns arriscavam a dizer que ali cabia gêmeos. Ela se gabava e atirava tudo a Deus. Desconhecia o sexo da criança, se era um, dois ou três nenês, se as coisas estavam em ordem ou desordem. O lugarejo carecia de infra-estrutura para exames mais elaborados e diagnósticos mais precisos. Nasciam e morriam poucas pessoas por aquelas bandas. Quando nasciam festejavam. Quatro a cinco dias sem parar. Quando morriam choravam. Quatro ou cinco dias sem parar. Literalmente o que mandava era o olhar clínico. O doutor olhava e anotava os remédios no receituário. Se tivesse na farmácia compravam, se não tivesse pediam alguma erva para o Sr. Alfredo ou apelavam para uma benzedura da Dn. Estácia.

A cada 10 metros Carmen tinha que dar uma paradinha e se recompor para novamente se por em marcha. Em cada casa que passava lembrava-se de uma história, um bolo de fubá que tinha sido compartilhado, um café que tinha sido feito com todo carinho ou uma partida de dadinhos que tinha rompido a madrugada adentro. Ia indo e ia lembrando. Até que os olhos de Carmen estavam centrados nos olhos de Alonso.

- Que foi mulher. Que cara é essa?

- A água Alonso? Como vai se lavar o bebê?

- Deve ter alguma coisa ainda, alguma economia.

Nem terminou o assunto e a bolsa estourou. O líquido correu por suas pernas e Carmen passou a ficar aflita. O Doutor estava esperando-a. Luca tinha corrido na frente para avisá-lo. Ela ficou descansada quando viu algumas bacias com água quente e sentiu uma paz do céu quando Dr. Alfredo chamou-a por minha menina Cá.

Mesmo quarenta anos depois quando Dona Carmen se sentava e os netos a rodeavam no chão para ouvir aquela história, aquela história continuava impressionando a ela e a eles.

Ia sentindo que Tadeu estava nascendo, que ia abrindo seu corpo para poder enxergar esse novo mundo. Rezava para ele. Rezava por eles. Rezava que nascesse novamente água do céu. O Doutor dizia que fizesse força e fazia. Olhava pela janela e sonhava em pingos batendo. Não queria o filho, filho daquela seca, daquela dor toda. Rezava para que tudo voltasse a ser verde. Está vindo minha menininha. Mais um pouco, mais um pouquinho. Um menino, um belo menino, disse o Doutor. Ela chorou de felicidade. E a felicidade dela foi tanta que o céu, o céu também chorou de felicidade naquele dia que choveu.

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