quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Lisa.


Olhou para aquela negra sentada na primeira fila do Museu do Louvre. Em um francês impertinente carregado no seminário de estética da arte ia falando do efeito subtil do Sfumato. Não conhecia o perfume de Da Vinci, se lá que o usasse, mas existia um cheiro de anatomia e tinta óleo no ar. Anos atrás tinha dado risadas das bobas pesquisas de Pierre Verge e o Candomblé, para ele mortos para lá e vivos para cá, essa coisa de mortos falando com vivos era tremendo bacanal filosófico.

Parou um instante a palestra e indagou a moça – francesa? Latina? De onde vem todo esse interesse pela arte? A moça respondeu apenas norte de Oyó, que o fez quase automaticamente franzir as sobrancelhas. Em um Yoruba admirável ela desfranziu as sobrancelhas do menestrel graças à intervenção de um tradutor: Oyó localiza-se na Nigéria, foi um grande império da África Ocidental, no século XV, hoje a república da Nigéria é um dos 9 países que mais rapidamente cresce no mundo, mas a maioria de sua população vive em profunda pobreza.

Era descendente do segundo Príncipe do Reino de Yoruba, Oranmiyan. Tinha crescido ouvindo aquelas histórias de grandes feitos, bravuras e por fim desastre. O poder era um desastre, a pobreza era uma guerra a ser combatida, não há paz dormindo ao lado da miséria. Cursou a universidade de Belas Artes na Nigéria, centavo por centavo do ganho da mãe inclinada no tanque. Mas o título nada mais valeu do que um emprego de camareira em hotel bonito na Inglaterra. Acima de tudo isso se sentia princesa do seu reinado, onde as estrelas são gratuitas para quem senti o céu.

Não podia deixar de lembrar aquela mulher com uma expressão encabulada e de certa forma tímida. A negra trazia um turbante na cabeça tal qual um véu típico de mulheres grávidas do século XVI. O vestido verde escuro. Regaço, pescoço e face: uma semelhança só que com uma tintura negra e mais jovem. Ao fim de sua palestra dirigiu-se até a moça e com muitas e muitas desculpas pediu se era possível que trocassem correspondências. Lisa sem maiores cerimônias rasgou um pedaço de papel e escreveu seu email. Que por meses ele a investigou, inclusive descobrindo que tinha uma criança e teria se separado do marido por ser impotente, alcoólatra e várias vezes teria tentado agredi-la.

Oramni repetidamente foi chamado atenção no colégio por seus desenhos de heróis, lendários guerreiros orixás e mesmo fantásticos monstros. Mas o chamado a atenção, algumas vezes era posto de lado. O menino era algo sobrenatural em desenvolver retratos em pinturas a óleo para as feiras de arte de sua escola , pública em bairro classe média no norte de Salvador. Aquilo passou a ser tão significativo que alguns outros estudiosos mandaram chamar uma sumidade em artes renascentistas denominado Angello Florentino para que avalia-se e quem sabe pudesse inclusive arrumar alguma bolsa para que ele estudasse em uma escola que pudesse dar mais subsídios para desenvolver suas habilidades, porque não dizer, talento surpreendente.

Era muito tarde da noite quando vasculhava os temas de Oramni. Ria das peripécias do menino com a tinta, com o grafite, com a cera, com seja lá for o que fosse. Eram centenas de retratos, de paisagens, de deuses, de mortais. Temas e exercícios nada feito. As folhas eram um ateliê de arte. Bem, mas bem no final do caderno existia um envelope escrito feliz dia das mães. Não entendeu porque não entregou para ela e o abriu. Lá estava ela, negra – MonaLisa.
Comprou passagens. Recebeu os emails dele e não respondeu. Recebeu outros tantos e permaneceu escondida. No final daquele inverno se sentia tão só que não resistiu. Apenas uma frase desabafava: você sabia e não me disse. Você sabe do restante e também não confessará.

Através das modernas tecnologias ele os encontrou, descobriu onde moravam e a hora e dias que iam a pracinha. Enquanto Lisa balançava o pequeno Oramni ele avistou ela em sua beleza que se eternizava no próprio tempo. As 17 horas eles o levaram. Embarcou em um avião para um seminário na manhã seguinte na Galeria da Academia de Belas Artes de Florença. Abraçaram-se, abanaram-se, eles viram o seu avião subir. Nunca mais ele tocou nesse assunto, o que não quer dizer que nunca mais esse assunto tenha tocado neles.

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