segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

[cobertor]

Viu aquele pedaço de aurora quando mal os olhos da lua iam se pondo nas vistas do sol. Retalho de algodão primoroso. Deu a costureira para que fizesse um bom e quente cobertor. Seria usado para cobrir o novo amor ou o amor que se foi e deixou os lábios gelados.


Não é uma loja, é um armarinho. Costura para as beatas da igreja que é em frente, algumas encomendas de reparação e bainhas que já se arrastam contando as histórias dos paralelepípedos. Faz alguns modelos e expõe na sua vitrine para vender. Quase ninguém compra, mas há muito aquilo deixou de ser um comércio para ser um ofício. Arrepiou-se quando abriu a caixa. Com os dedos furados pelos anos de costura tirou lá de dentro a sua fazenda. Falou que usaria o tear de pregos e o estilo seria com ponto ziguezague, toques de escama e algo mais infantil para não perder a matéria angelical. Continuou dizendo que não ficaria maior que 2 metros de cumprimento por 3 de largura: tamanho solteiro.

Bastaria aquecer os olhos de ilusão. Será razoável quando a dor lhe parecer insuportável, o dinheiro não lhe for sinônimo de riqueza, o vinho não simbolizar o sangue do cordeiro, a crença não pedir trem para a guerra e o sacrifício não for uma forma de esconder a falta de prazer em acender pelo menos mais um fósforo.

Só após meia dúzia de meses a danada marcou para entregar a encomenda. Foi atacado de tamanho ciúme – o cobertor tinha sido usado. Ensaiou algumas palavras ofensivas, buscou alguns verbetes mais que especialmente feios, mas antes de tudo isso, ela lhe disse que Clara teve noites e dias de muito inverno, mesmo quando o sol era radiante. Perplexa com tanta angústia além de tentada cedeu aos pedidos da moça e a deixou usar o cobertor.

Nunca mais viu a costureira, mesmo passando diariamente em frente ao seu armarinho. Nunca conheceu Clara com quem para sempre ficou aquela peça. Sabe somente que Clara curou-se, teve filhos e foi ser feliz. Abriu a janela pela manhã e lá estava novamente o pedaço de aurora. Dessa vez não a pegou. Colocar em cativeiro o que é livre pode passar do atelier para a prisão.

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